segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Letting it out

That symptom used to come over him once every week. Every Friday, when the working hours were almost over, the feeling came sly and ruthless. By the time the office was getting ready to call it a day, he got more and more afraid because he knew the feeling would come to possess him mercilessly like it always did.

There was nothing he could do after being taken by that sensation of excruciating confidence. He has never been that secure in his whole life. Someone who has always taken the safest road, the most harmless decisions, and now it was like something strange had taken control of his body. As if some spirit whose personality was already dominating his, was representing a role which conveniently was his life. And, in spite of all the control under which he had been submitted, the only safe piece of knowledge he had was that that serious brunette man wasn’t him anymore.

At dusk, he sensed that the strange behavior was slowly getting stronger as a wicked glare passed by his eyes. When looking in the mirror, he thought he could be turning himself into someone else. Nonsense!

A hot shower would calm those crazy thoughts. It didn’t. After all the hot steam, the expensive aftershave balm and pricey perfume, he kept staring at that naked body in the closet’s full-length mirror and couldn’t recognize those forms. The strong thighs, the muscular shoulders and the impetuous look in his face… That wasn’t his figure. He was inconsolable because he couldn't know whose body was that.

The man looked at the alarm clock at the nightstand. It was late. Late enough so kids could be in their beds and grown-ups out of theirs to do what they were well-known for doing best: drinking, having casual sex, causing trouble and feeling lonely afterwards. His heart started pumping stronger than ever.

Another glare at the alarm clock, he knew exactly what he had to do to find himself again. “I need to find out who owns this body because certainly it isn’t me” – the feeble voice thought before fading away for the rest of the night.

A pair of jeans and a tight black t-shirt were just enough. He left the apartment driving dangerously fast and aiming for some crowded nightclub with a great deal of blinding lights, loud electronic music and drowsy colorful drinks.

As soon as he got there, he felt that sensation again… the confidence emerging from the depth of his being. And, as the music was getting louder, he seemed to be getting possessed again by those feelings which made him feel as if he was being ignored by his own self. And then, for the rest of the night, the confident man acted while he just observed.

In the morning after, a bright Saturday, he woke up. Now he was feeling insecure and sad just like he used to – insecure and depressed was good! He looked and saw in the bed lying next to him was a naked girl sleeping. He was extremely shocked because he had no idea whatsoever of how that girl ended up with him. A pretty girl with blond hair and beautiful legs.

He was cold. The hangover was awful. It was like as if his head was going to explode and his mouth had been filled up with cotton, so dry it was. He got up and went to the kitchen. Dirty glasses, an empty bottle of wine and next to the counter was an ashtray overfilled with half burnt butts, even though he didn’t smoke. Well… he could at least feel some comfort knowing that it hadn’t actually been him who did all that. He got dressed and left leaving the front door opened so the girl could find her way out.

And every Friday went like that. By the time he got in a place no mattered where that confident ghost would take place and act as him, doing everything he had never dared to do. The ghost would also leave him pieces of the turbulent night so he ashamed could reconstruct “his” itinerary and clean up after that ghost’s actions the next day.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Pronomes pessoais em um dia cabalístico

Poços de Caldas, 10/10/10

Apesar de serem amigos há muito tempo, falavam pouco, só o necessário, o que, para eles, já era mais que o suficiente. Ela era namorada do melhor amigo dele. Amigo que, hoje, nem é tão melhor assim. Ele, secretamente, gostava dela. Ela o achava uma graça. No entanto, nunca acontecia nada... nada acontecia.
Até que, num dia nublado qualquer, ela saiu para passear e, como toda boa moça, não pôde deixar de perder um tempinho vendo vitrines. Ele, inocente, também tinha saído, iria pagar umas contas para o pai. Eles não se viam fazia tanto tempo.
Encontraram-se em uma padaria, ele a olhou bem enquanto estava pedindo as bombas de chocolate. Ele ficou vermelho – costumava ser gordinho quando pequeno. Ela entendeu a vergonha e, então, fez um pedido também: cem gramas de mini-croissants de queijo. Ele era o doce e ela o salgado. Ele sorriu, ela sorriu. Foram comer juntos. Eles conversaram o necessário... e o desnecessário – eles precisavam de um supérfluo: “qual outra música você toca no violão?”, “fala outra coisa em italiano...”.
Quando ele percebeu que ela comia o último bocadinho, o último farelinho, o menino sentiu medo, e enjôo, e pavor, e dor no coração: ela iria embora. E ele não esperava o convite para acompanhá-la até o ponto de ônibus.
Ela estava esperando o ônibus com ele, o Senhor Mãos Suadas, quando começou a chover. Era um temporal tão forte que as árvores poderiam ser arrancadas do chão. Em alguns minutos eles estavam ensopados, mesmo estando sob o teto do ponto de ônibus.
Quando ela se encostou, bem devagarzinho, contra o peito dele, o abraço foi inevitável. Ele estava mais forte. Ela era tão delicada que parecia um passarinho. Ele gostava de passarinhos. Eles encaixaram-se tão perfeitamente, parecia que deveria ter sido sempre assim. A chuva continuava, o ônibus nunca vinha e eles ali.
Ela sentiu o início de um espirro, virou-se fazendo uma careta, bem quando ele se virava para perguntar algo. Ela não espirrou. Ele não perguntou. Os olhos, os narizes, as bocas. O mesmo ar, o mesmo sentimento, a mesma chuva, o mesmo beijo, o mesmo longo e maravilhoso beijo. A barba dele fazia cócegas. Ela tinha um cheiro tão bom. Ela fala italiano! Ele toca violão mesmo!
Os dois entraram no ônibus. Ela desceu vinte minutos depois. Ele a olhava pelo vidro, o ônibus não parou... não parou! Um minuto depois, ele desceu. Abraçaram-se forte. E, a partir daquele dia, nunca mais foram os mesmos.

O tique-taque de um menino louco

I

— Hugo, você não consegue fazer nada direito? – a reclamação veio seguida de uma bufada bem sonora.
— O quê? Por quê? Mas não era essa a fantasia que você queria...?
— Não! Não era! Você nunca me ouve. Ai que raiva!
— Mas, amor, você disse...
— Eu sei bem o que eu disse e não foi isso! – jogou a máscara longe.
— Dane-se – o rapaz disse indiferente – Eu nem vou nessa festa estúpida mesmo.
— Claro que vai! Vai me deixar ir sozinha?
— Não quero ir. Se falei que não vou, é porque não vou e pronto!
— Você é meu namorado, por isso vai à festa comigo e ponto final.
— “... e vai comigo à festa...” – disse debochando.
— O que foi...?
— Não. Nada, não.
— Fala! Fala...
— Eu não vou na festa com você, não quero ir, que droga! Custa tanto assim entender?
— Tudo bem, então, eu vou sozinha...
— Pode ir, nunca te proibi.
— Ah! É assim, então?
— É. É assim mesmo. Do jeitinho que você tá vendo. Tô cansado da sua implicância com tudo o que eu faço!
— Que implicância? Você que não faz esforço nenhum por nós.
O rapaz mordia a parte interna da boca tão forte que sentia o sangue descer pela garganta.
— Nós? Ah! Essa é boa! Agora é “nós”. Deve tá louca mesmo.
— Louca? Agora eu que sou louca?! Você que não me escuta, não faz nada direito e eu que sou louca?
— Quer saber? Aqui, ó... pega isso aqui – apanhou a máscara no chão, jogando-a na menina – e vai trocar você mesmo! Faz alguma coisa útil dessa vidinha vazia! Desocupada!
— Hugo...! – “ele nunca falou assim comigo...” – era o que se podia ler nos olhos saltados da garota.
— Vê se me esquece. – disse saindo do apartamento da namorada. Corria igual a um maluco pela rua, queria chegar logo em casa.
O celular de Hugo estava há uma semana desligado, a avó não ligava mesmo, ela mal sabia mexer no controle remoto. E ele podia, enfim, ter sua paz.

II

O amanhecer daquele dia trouxe consigo um rebuliço de nuvens coloridas que lembravam algum tipo de doce pecaminosamente gostoso, como um sorvete cuja massa, aerada e saborosa, derrete na boca e gela o cérebro se você o engolir rápido demais.
Nas árvores, os passarinhos saudavam a manhã. No centro, a cidade ainda dormia. E naquela casa no final da rua sem saída, o dia já começara fazia tempo.
Os azulejos do banheiro suando, o boião de vidro com xampu, o corpo recém-ensaboado, o perfume gelado, as roupas passadas. Um tempo contado...
Passou rapidinho na cozinha antes de sair. Tinha tanta fome de manhã. “Cadê aquele bolo? Ah é... no forno!” Foi ali onde a avó tinha guardado o bolo do dia anterior. Como gostava de bolo de cenoura! Já enfiava o segundo pedaço na boca, correndo, afobado, sem nem sequer ter terminado de engolir o primeiro.
— Vai passar mal assim, meu filho.
— Nossa, vó, que susto! – disse cuspindo farelos por toda a pia da cozinha.
— Calma! Não precisa engasgar... – a avó disse com um leve risinho.
— A senhora me assustou, só isso!
— Você, guloso assim, pode passar mal algum dia.
— Já tô atrasado, vó. A bênção. – disse saindo da cozinha.
— Deus te abençoe, meu filho.

III

Mal a porta bateu, o rapaz já corria. Trabalhava em uma cafeteria no centro da cidade. Era um dia normal, uma manhã corrida, como todas as manhãs de quem trabalha. Todo o mundo acotovelando-se para ser atendido antes. Pessoas que só se humanizam depois do primeiro gole cafeinado. Eram quase nove horas, o movimento na cafeteria diminuíra. “Será que eu consegui, pelo menos, um cinco na prova de geometria?”, “será que eu ligo pra ela? Já faz uma semana?”, “que raiva da vó, por que ela tinha que jogar meu casaco vermelho fora! Era só costurar...”
Um casalzinho numa das mesinhas da calçada, tic, um cara digitando algo no computador na mesa ao lado da máquina de expressos, tac, uma mosca batendo no vidro da estufa de doces, tic, alguém entrando, tac. Nove e quarenta.
— Oi. Bom dia, tudo bem? Um macchiato, por favor.
— Um o quê? – “quem fica feliz assim nesse frio?”
— Um café com leite.
— Ah! – “Por que será que não falou café com leite...?”
— Extra-grande, por favor.
— A gente só tem o grande normal mesmo, pode ser? – “Cara esquisito”
— Não tem problema, pode ser sim.
— Tá... – percebeu que estava sendo mal-educado, tentou ser mais simpático, levar o dia bem... – Nunca te vi aqui no café, você é daqui da cidade mesmo?
— Sou sim, é que eu comecei a trabalhar hoje naquela livraria do outro lado da rua.
— Ah... legal! – olhou no crachá: Guilherme. “Bonita a blusa dele. Boné estranho... é cinza ou azul? Cinza-azulado? Será que é desbotado?”
— Eu estou bastante empolgado. Você pode por açúcar, por favor?
— Posso – “Primeiro dia de serviço com essa barba?”, “E esse boné?”
— Sempre quis trabalhar com livros...
— E uma livraria pareceu a melhor opção? – disse rindo inocentemente – Aqui seu café.
— Quanto?
— Três e cinqüenta.
Guilherme remexia os bolsos, procurando os cinco reais que ele achava que estavam ali, mas, na verdade, ficaram no bolso de outra calça jeans que agora estava sendo lavada.
— Esquece. Hoje fica por conta da casa.
— Valeu.
— Qualquer dia desses, eu passo na livraria pra retribuir a visita...
— Isso, passa sim!
Nove e cinquenta e cinco. Não havia mais ninguém na loja. O senhor Dupont cochilava no caixa. Olhou atrás de si, viu o calendário, dia 30. “Amanhã é o dia da maldita festa!”
Veio o dia trinta e um. O senhor Dupont chegou meio enfezado: “Hugo, você já fez isso?”, “Não, Sr. Dupont”, “E isso?”, “Ainda não também”, “Mas já é quase meio-dia! Você ainda não fez nada? Nada!”. O rapaz já não prestava mais atenção ao patrão. O pensamento estava no que iria fazer à noite. “Hoje é sexta, dia de ver filme, comendo pizza no sofá da sala... e a festa?”
Começou a colocar as xícaras lavadas no escorredor, droga de festa! Menina estúpida! Tinha certo brilho no olhar. De repente quis ir à festa sim, mas antes teria que decidir uma coisinha, não podia ir ao baile sem uma fantasia... a ideia veio enquanto ele atravessava a rua.
— Você não quer ir numa festa aí comigo?
— Oi? – Ela nem terminou de colocar o vaso na prateleira.
— Vai ter uma festa à fantasia hoje, quer ir?
— É... é... vou sim – “não fala nem oi”, “ai meu Deus” “e a fantasia...?”
— Vai ser hoje à meia-noite, sua fantasia eu mesmo arrumo, deixo aqui pra você hoje à tarde, pode ser?
—É... pode. Pode sim – não adiantava falar não agora. – a fantasia é de quê?
— Ah! Eu vou de Chapeleiro Maluco e você de Rainha de Copas.
— Ah, legal! Não deixa de passar aqui, heim. Sem fantasia não vou!
— Pode confiar. Comigo tá tranquilo. Quando eu deixar a fantasia aqui, a gente combina melhor, tá?
— Pode ser...
— Assim que se fala! – Hugo disse eufórico, abraçando Ana que já não entendia mais nada. – Até mais tarde!
— Até... – “O que foi isso?”, “Como assim?” – Espera! Hugo.
— O quê?
— Mas... e a sua namorada?
— A gente terminou.
— Nossa! Eu não sabia. Que chato! – A menina não estava sendo muito sincera.
— Não, tá tudo bem, faz tempo, já. Passo aqui mais tarde.
— Até mais tarde. Ah... passa antes das seis que é quando eu fecho a floricultura.
— Pode deixar. Eu vou ter que fechar o café hoje também, antes das seis venho aqui.
— Tá.
Hugo saiu saltitante da floricultura onde a vizinha trabalhava. Não voltaria para o trabalho naquela tarde, sorria assustadoramente enquanto pensava: “A Alice vai ficar puta da vida!”

sábado, 11 de setembro de 2010

Dia a dia de solteira

Inscrição na areia

O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!

Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?

O meu amor não tem
importância nenhuma.

(Cecília Meireles)

O sol espalhava seus milhões de raios finos e coloridos pela tarde que tinha o cheiro fresco e honesto de terra molhada. E a dona de casa nem via aquele lindo pôr-do-sol, pois estava preocupada demais com as tarefas ali na cozinha. A mãe limpara toda a casa, agora só falta preparar o café para quando eles chegarem morrendo de fome. Suco, bolo, pão, geleia, manteiga, leite... o que mais mesmo? “Tenho que começar a fazer esse bolo logo.”
No centro da cidade, o executivo trabalhava no layout de um anúncio de creme facial de uma empresa francesa. Suava com aquele calor cruel. Já estava com a corda no pescoço, pois era para ter entregado esse projeto ontem, ainda bem que estenderam o prazo até hoje à noite. O pai perdia seus dias frente a um computador sob a luz branca do seu cubículo. “Tenho que ligar em casa e avisar que vou chegar tarde hoje.”
Saindo da academia de ginástica, a menina de olhos azuis olhou para o rapaz de camiseta regata que estava encostado no balcão da lanchonete. Ele não a viu. As amigas perceberam. A menina de olhos azuis não iria dormir em casa.
O menino de olhos azuis saída da aula de tênis, quando viu um carro preto parado na esquina, era o furgão de um amigo, o menino também não dormiria em casa.
Tudo na casa estava lindo, o chão encerado, os cômodos perfumados, a mesa posta. Tudo perfeito. Enquanto a mãe tomava seu banho, a secretária eletrônica gravava os recados: “Amor, hoje vou chegar mais tarde, tenho que terminar aquele projeto. Te amo”, “Mãe, vou sair com as meninas depois da academia, viu? Beijo”, “Mãe, vou dormir na casa do Marcos hoje, tá? Até amanhã”.
Oito horas no relógio da sala, silêncio. Na mesa da sala de jantar, um pires, uma xícara, uma colherzinha de café. No banheiro, uma toalha molhada, um pote de creme hidratante, uma escova de dente. Na mesinha de cabeceira, um copo d’água, um livro, cinco comprimidos. Amanhã é um novo dia.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Sem motivo

Mesmo com toda beleza
Não lhe quero dizer
Uma cançãozinha de tristeza,
Da noite ou do entardecer.

Eu quero escrever
Trova daquele prazer
E que fale deste amor,
De deleite e também de dor.

Da chama que havia sido
Que, em demasia,
Transformara o acontecido.

Dor que queima e consome,
Sem motivo extasia
E, assim, rápida, some.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A sapateira de um adolescente

"Tudo pudesse a beleza,
e, de encoberto país,
viria alguém, com certeza,
para fazê-la feliz,
contemplando-lhe alma e corpo,
ai!
alma e corpo contemplando-lhe..."
(Cecília Meireles)

Dois pares de tênis encontraram-se rapidamente em uma esquina, viram uma loja de móveis, uma padaria e, do outro lado da rua, um hotel caro demais. Eles não precisavam nem de cômodas, muito menos de pães, então... hum... o saguão do hotel está bom demais.
Apesar do horário, o centro da cidade continuou vazio, inclusive durante aquela uma hora e meia. E, quando os meninos saíram na calçada, viram que o céu estava diferente. Ainda estava nublado, mas as nuvens agora pareciam mais pesadas. Havia tanto cinza – estava tudo muito estranho. Naquela cidade tudo era extremamente estranho e eles, estranhamente, gostavam disso.
Ao olhar aquele céu, parecia que nunca houvera um sol nem haveria nunca uma noite, era só aquilo, aquele cinza-chumbo. Será que o purgatório era assim? E o vento continuava a gelar os ossos e parecia que ia chover, já eram quase sete horas! Será que a blusa dele está na mochila? Eu deveria ter trazido a minha, não quero pedir emprestado. Ai que fome! Melhor nem olhar pra dentro dessa padaria... Nossa, que cheiro bom! Olha aqueles croissants! Quem precisa de comida agora? Só engorda. Nossa... e aquele sofá branco? Olha aqueles castiçais de cristal... minha mãe ia ficar louca aqui.
Vitrine, loja de móveis, silêncio, hesitação...:
— Fred, gostei do tênis novo.
— Ah...! – de onde veio isso? Ele não tinha visto esse tênis antes? Claro que tinha!
— É novo? – Henrique perguntou tecnicamente surpreso – Legal esse verde camuflado...
— Ah... comprei lá na... o seu também é legal, Ique.
Esquina, semáforo, pessoas, tênis verde, olhos, tênis azul, olhos, hesitação...
Cada um para um lado. Ele andava pesado, como se houvesse placas de cimento em seus pés, olhava tudo tão admirado, aquele céu cinza fazia tudo parecer tão mais irreal, será que aquilo aconteceu mesmo? Ou seria outro devaneio da sua cabeça fantasiosa, buscando uma fuga mais excitante daquela realidade já tão... real – ele gostava de imaginar.
Perdeu a hora, dormira demais, quando chegou à escola esperou pelo intervalo para a troca de aula e entrou de fininho.
Terceira aula. Ele era o tipo clássico: aquele de quem todos gostam. Bonito, notas altas, vida social estável... perfeito. Será que ele sairia algum dia de moda? – Henrique se perguntava – Ainda que tal questionamento fosse mais do que esdrúxulo, ainda assim, será? Será que o sorriso, as pupilas brilhantes, o corpo não tão amigo, mas já tão conhecido cairiam algum dia no desgosto popular? É... mesmo perfeito daquele jeito, tudo aquilo ainda podia um dia acabar. Não queria pensar naquilo. Cutucou um colega e perguntou o que estava escrito no quadro-negro: “São limites” – ele ouviu. “Ah, sim. Valeu!” – Henrique respondeu, pensando: “Até a matemática tem limites...”
Quarta aula. Um dia depois. E eles continuavam sentados um na frente do outro, como sempre foi, como se nada tivesse acontecido, como se ele não me tivesse roubado a namorada e eu não tivesse, numa vingança desnorteada, feito exatamente o contrário do que deveria ter feito. Era dia de apresentar o trabalho de geografia. E eu, como sempre, fui à frente e falei, porque era só aquilo que sabia fazer, falar.
Quinta aula. Eu não poderia simplesmente esquecer que tudo aquilo aconteceu? Ou então voltar ao começo e refazer tudo, de novo? – verbalizava o do tênis azul, também chamado Henrique. Ique para os amigos – Por que não? Já havia refeito aquela história tantas vezes na própria cabeça, droga de filosofia auto-ajuda!
Sexta aula. Pensou na vida que o amigo levava, sentiu raiva. Não porque o Fred fosse melhor que eu – Fred, do tênis verde, também chamado, pelos pais, de Frederico. – Mas... ele era muito, ah! Que ódio! Tudo que ele queria, ele conseguia. Era dito e feito, inclusive a minha namorada... Droga! Meu nariz tá escorrendo, quando escorre fica vermelho, depois resseca e, então, descama e quem vai gostar de alguém descamando como um lagarto trocando de pele? Nem a ex-namorada, nem o juiz do concurso da feira de ciências, ninguém. É triste, mas é verdade: aparência importa, não é aliviante saber disso?
Chegou em casa, a mochila ficou em algum canto entre a porta de entrada e a sala de estar. Deu tempo só de deitar-se no sofá e... caiu em êxtase, mas não um êxtase bom e sim uma sensação de abandono, indiferença cujo peso fazia-lhe doer os ombros, por isso deitou-se, senão cairia com todo aquele peso da vida dupla que já não era sua. Sem namorada, sem amigo... amigos... mas...
Levantou-se subitamente. Nenhum amigo para ligar no fim de semana insistindo em sair, nem namorada exigindo uma atenção que não conseguia dispensar nem a si mesmo. Começou a sentir-se bem... teve vontade de tomar café. Bem forte e bem doce.

Indiferença à mesa do chá das cinco

No mármore todo pintado, moram
Xícaras brancas e flores de cristal.
Olhos que se cruzam, mas não ousam
Falar as palavras causadoras de tal mal

– a palavra que ninguém quer falar –

Uma colher prateada que gira,
O pôr-do-sol que nas tardes frias
Não esquenta a mão que agora vira
Todo o mundo negro e quente do café...

– a mão que ninguém quer segurar –

E a noite chega, as mãos pousam
O casaco macio em que os ombros repousam
Sem palavras. Um final cujo grande mal
Está nos olhos do não-dito de uma tarde invernal.

– a situação que ninguém quer explicar –

sábado, 17 de julho de 2010

Diversão a noite inteira...

É tão triste ver claramente aquilo que me tornei. Tantas coisas promissoras que poderiam ter sido tanto... Eu queria que o futuro fosse um céu de inverno: azul e genuíno. Sem nenhuma nuvem perturbando a imensidão limpa de paz. Mas essa imensidão, com o tempo, restringiu-se à janela, à vista, aos olhos e agora ao nada. Não consigo ver o céu daqui.
Mesmo não sendo capaz de silenciar as vozes latejantes em sua cabeça, a escuridão era-lhe estranhamente reconfortante – talvez porque, ao menos, podia atenuar a melancolia e o ódio dentro dele. Olhava o céu, nada mais que um universo de carvão. Sentia-se sozinho.
Assim como seu dono, o apartamento estava igualmente abandonado. A cozinha, um nojo completo. A pia cheia de louça suja, engordurada; copos espalhados por todos os cantinhos escuros. Naquele momento, não pensava em limpeza. A varanda estava limpa. Chovera.
Devido a todo o uísque que tomara, sua visão bambeava e o estômago tentava regurgitar algo que não havia ali, droga!
Enquanto isso, a parasita estava alegre em algum lugar dessa cidade. Parasita, sim! Mesmo com sua elegância e todos os sapatos caros... me usou, não usou?
Entretanto, ela não escolhia qualquer um, já que combinaria bem com um atleta, quanto mais forte, mais leso. Mas não, ela queria os introvertidos e antissociais, porque, assim, o desafio era maior.
E, embora levasse tempo, com boa vontade e interesse ela conseguia. Já conseguira tanta coisa! Não queria nem quantidade, nem qualidade. Ela queria precisão. Quanto pior o resultado, melhores eram suas táticas. Provavelmente aquela mulher era toda feita de incitação e provas concretas de um mal ancestral. Ao final das contas, ela, feliz, dançava ao som de solos de guitarra; e eles, ao som de árias tristes.

Nuvens vermelhas como sangue acumulavam-se nos cantos do céu, bordejando as montanhas quase negras enquanto a lua brilhava amarela e opaca. Uma noite escura cheia de pessoas cultas e desesperadas em uma vernissage.
A moça loira olhava uma escultura abstrata, quando ele chegou, disfarçou o nervosismo e tentou falar da melhor maneira que podia:
— Bonito seu anel. De citrino, não é? – disse com cara de entendido, enquanto ela agora olhava a grande pedra amarela no dedo.
— Ah! É esse o nome? – respondeu com ar desinteressado.
Ele a olhou, depois à escultura, e tentou mais uma vez:
— Bonita, não é?
A moça dos olhos brilhantes parou, pensou um pouco... coitado:
— É... bonito... – e com uma olhadela examinou-o de cima a baixo. Reparando bem no pulôver de lã cinza, nos sapatos velhos e nos cabelos desgrenhados. Ele, desanimado, já ia saindo, quando ela disse:
— Você não me falou seu nome...
E ele voltou. Pelo resto da noite... iria, voltaria, subiria, desceria, rodearia, poderia fazer o que ela mandasse a noite toda.

O temporal cairia em minutos, mas algo mantinha as nuvens firmes como mármore. O céu cor de cobre, as nuvens cor de sangue, aquilo não estava certo. E, apesar da paisagem ser linda, eles ignoraram-na, pois havia um carro muito ansioso para voltar à garagem.
Decidiu ir comprar sapatos novos, mas estranhou quando a viu na mesma sapataria rindo com as amigas. Por que ela estaria tão feliz? Estavam falando dele? O quê? Dele? Qual seria o assunto? E por que ela fica dando risadinhas para aquele atendente de camisa azul? Teve vontade de pular de um nono andar, arrebentar-se no concreto. As pálpebras pesavam. Precisava de uma cama quente ou qualquer outra coisa que o acalmasse. Um banho, um café, um colchão com seus convenientes anexos.
Houve discussões, ela foi embora como a garrafa de uísque acabou de ir, agorinha mesmo. Depois, nervoso e com a boca seca, ele, a todo minuto, discava números já memorizados, mesmo sabendo que ninguém responderia mais do outro lado.
Talvez ela não fosse de todo ruim. Era bonita, elegante... “Qual o seu nome mesmo?” – era simpática. “Pode me passar aquele livro?” – nem parecia uma pergunta. “A gente se vê.” – nem parecia uma mentira.
O que ela fazia era isso. Na vinda, trazia beleza, um fugaz burburinho e só. Na partida, o prazer, paixão e arrebatamento, tornavam-se um misto melancólico e destrutivo.
Ela os queria, porque eram seu oposto: nervosos, previsíveis, possessivos. Nunca seria pega, pois os homens não percebem nada. Sequer um anel bonito, mas de vidro.
E, agora que um novo dia rasga dolorosamente o topo das serras, nada está bem, muito menos azul e genuíno.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Vida às seis da tarde II

Amigos para sempre

— Deixa ele saber – disse enquanto terminava de vestir as calças.
— Tá doido? Essa é boa... ah! Imagine a cara do Carlos se soubesse da gente? Acho que ele enfartava...
— E se ele souber? – disse debochado.
— Nem brinca com uma coisa dessas. Pensa no Carlinhos... – fez uma pausa, engoliu seco e disse:
— Afinal, vocês são amigos de sempre. Quase irmãos, Henrique. – disse em tom solene.
— Irmãos! Ah...! Ele que se dane!
— Não fala assim que eu não gosto. Vocês são melhores amigos, não são?
— É... somos. Melhores amigos – repetiu baixo e saiu com a mochila nas costas. – Tchau! Tem prova amanhã, tenho que estudar.

Vida às seis da tarde I

Feira de fim de ano

— Espera... é uma senhora de uns cinqüenta anos, de vermelho e cabelo curto? – eu disse fazendo uma cara de confuso.
— Isso! Essa mesma! Mas para todos os efeitos ela tem quarenta.
Dei um sorriso simpático e apontei a direção da banca em que a senhora, provavelmente mãe dele, estava. Desde que chegou, aquele homem estava tão perdido naquela feira que fiquei com dó e acabei dando um de bom samaritano. E, além disso, sua mãe era conhecida por todos, pois adorava as feiras de artesanato de nosso colégio.
Continuei vagueando pela galeria, correndo os olhos pelas caixinhas, enfeitinhos e demais cacarecos que todos achavam lindos. Todos, menos os alunos, pois passávamos tardes inteiras fazendo as peças e também porque achávamos aquela exposição um absurdo. Parecia dizer às pessoas que não sabíamos fazer nada além de pintar toalhinhas e marchetar porta-jóias de madeira envernizada. E nós, francamente, éramos capazes de fazer muito mais do que peças de artesanato.
— Carlos, vai buscar aquelas caixas que ficaram lá no almoxarifado. – a coordenadora me falou. Nunca gostei muito dela. Diziam que ela tinha um espírito artístico brilhante. Eu só via empáfia e grosseria por trás da armação dos óculos no rosto redondo. Mas... como eu era um dos alunos que ficaram para ajudar, tive que ir. Ah! Mas a escola é grande e ela nem quer tanto essas caixas. Bem que daria tempo para um passeio.
Nas ruas negras de piche – sim, havia ruas na escola –, eu escutava o barulho dos meus passos, diminuí o ritmo até não ouvir mais nada. O cheiro dos ciprestes era muito melhor à noite, sem toda aquela obrigação de aulas e provas, atrapalhando a vida. Infelizmente, cheguei logo ao velho almoxarifado que era usado só para estocar as peças prontas para as deliciosas feiras. Era uma sala bem grande, podia ter sido tão melhor aproveitada. E agora assim: a porta velha pintada de verde-musgo, o forro que abrigava cupins cujo barulho parecia tão grande quanto o escuro mole e pegajoso do lugar.
Carlos procurava um interruptor quando ouviu um som agudo? Um miado? Uma risada? Viu de relance um vulto. Achou que não fosse nada, mas quando o vulto tossiu, quase desmaiou.
— Eu não mordo, não... – deu um risinho sarcástico.
— Que susto, seu idiota! – disse enquanto tentava se acalmar, esfregando a mão no peito.
— Até parece que viu um fantasma – Henrique disse brincando.
— Muito engraçado! Vim pegar as caixas que a outra me pediu tão interessada e você aqui escondido no escuro!
— Relaxa – deu um tapinha nas costas do amigo.
— Casaco legal, Henrique...
—Comprei naquela loja nova no centro. Tem umas blusas legais lá, meio caro... o tecido pelo menos é bom, olha...
— Verdade, parece camurça. Por que você não me ajuda com essas caixas e depois a gente sai, hein?
— Pode ser.
— Então vamos logo antes que a dona Dulce tenha um filho.
Saíram com as caixas, carregando-as da melhor maneira que podiam.
— Aqui, dona Dulce. Colocaram o pedido no chão.
— Ótimo, meninos. – disse, inspecionando o conteúdo (estátuas de gesso) – Nenhuma quebrou, maravilha! Podem ir se quiserem, vocês foram muito bonzinhos hoje.
Desceram a ladeira que dava para o portão principal, já fechado – passava das onze. Carlos estava entretido em fechar o zíper do casaco. Henrique queria sair de lá o quanto antes.
— E aí? Aonde a gente vai? – Carlos falou assim que atravessaram o portão de ferro.
— Não sei. Aonde você quer ir? – Henrique estava pouco interessado, preocupava-se em acomodar as mãos nos bolsos da calça jeans.
— Ah, qualquer lugar está bom.
— É que não estou muito animado pra sair hoje. Todo esse artesanato da feira me cansou. Só quero ir pra casa.
— Ah, então a gente se vê amanhã. Ih... amanhã não vai dar, a Cecília quer sair comigo.
—Fica pra outro dia. Depois a gente marca, tá?
— Daí você me liga...?
— Claro!
Foram andando. E nunca... nunca quatro quarteirões pareceram tão longos.

domingo, 11 de julho de 2010

Amolação

Eu nem queria nada aquela noite. Estava só no meu canto da cama esperando poder dormir em paz, sem que ninguém ficasse me encostando.
Mas, não...! Ele queria. E, simplesmente, ignorou todas as negativas. Parecia que, se eu não cedesse, ele morreria, parecia implorar... ai, vida!
Bem... que há de se fazer numa situação dessas? ... Foi só uma perguntinha retórica, claro que não acho que vocês passam por isso!
Resumo da ópera? Vamos lá!
Não houve ópera. Só um one man show.
Podem falar o que quiserem, a culpada fui eu, mas isso não importa. Culpada ou não, eu vou sair às compras amanhã bem cedo! Não que eu esteja precisando comprar nada, mas uns sapatos exorbitantemente caros bem que compensam essa amolação.

sábado, 10 de julho de 2010

Conclusões

— Tudo bem?
— Acho que sim... – Antônio disse quase dormindo. Suspirou curta e secamente, meio insensível, poderia ser cansaço também, coitado! Tem trabalhado tanto ultimamente! Deu espaço na cama para Olga que, rapidamente, deitou-se, tirando só o jeans que vestia.
Olga queria pegar logo no sono, havia tido um dia cheio. Sua tese de mestrado fora corrigida por aquele orientadorzinho que sublinhou praticamente toda a pesquisa. Caneta cretina! A rotina maçante de seu trabalho sufocava-a. Pelo menos a família estava melhor, o pai saíra do hospital e a irmã formara-se na faculdade.
Idiotice – pensou consigo – também não fiz progresso algum na bendita terapia. “Você tem alguns problemas com envolvimento emocional...” – Olga disse baixinho fazendo uma careta. Terapeuta estúpida!... Dormia agora profundamente.
Acordou cedo, dormia-se tranquilamente ao lado. Olga achava aquilo engraçado, Antônio nunca acordava com o despertador. Um leve suspiro ecoou na imensidão branca da cozinha. Gostava de fazer aquilo, acordar um pouquinho mais cedo e preparar o café da manhã. No entanto, a única parte ruim era a torrada dela que sempre tinha de ser dividida. Mesmo ela perguntando:
— Você quer que eu faça uma pra você, Antônio?
— Não... eu não gosto muito de torrada. Muito seca, credo!
— É... sei.
Se não gostava, por que então ele sempre vinha com aquela lengalenga: “Me dá um pedacinho...” Não queria pensar naquilo, senão começaria o dia de mau humor. E a manhã de sexta-feira estava tão linda. Ah... era sexta-feira.
— Bom dia... Nossa! Já tá pronto. – Antônio falou, coçando os cabelos bagunçados – Olga...? Quando vou levantar e te encontrar ainda dormindo?
— Quinta-feira passada eu ainda estava na cama quando você levantou.
— Você tava na cama, mas não dormindo. – disse mordendo um pedaço de bolo de laranja.
— Que tal sentarmos e começarmos a comer antes que o leite esfrie, sim? – evasiva, Olga respondeu antes de tomar um gole de café com leite espumante, depois mordeu um pedaço de pão com manteiga, guardando a torrada recém feita, a parte mais gostosa, para o final.
— Me dá metadinha dessa torrada? – disse o noivo, que mais parecia uma criança sorrindo com a boca toda lambuzada de geleia.
Ela sorri, corta a fatia e lhe dá metade, pensando: “Ai que raiva! Sempre metade, não é? Porque eu nunca como uma única torrada inteira? Poderia ser o pão, ou o bolo, mas ele sempre come a metade do que eu mais gosto: a minha torrada. Saco! Amanhã vou tomar café antes dele acordar.” – com um pouco de desgosto engole o bocado final da guloseima, se é que se pode chamar uma torrada de guloseima.
Em menos de uma hora, saíam do quente apartamento para a imensidão fria de piche e concreto que os aguardava.
— Às sete a gente se vê – Antônio pisca para ela.
— Porque só às sete horas? Você sai às cinco do escritório.
— Trânsito querida, trânsito.
— Ah! É mesmo... – tanto passou por sua cabeça naquele instante... Poderia ficar sem ele, sem o vagaroso arrastar de pés pelo apartamento, sem a respiração calma, pausada e confiante. Respiração cuja presença dava-lhe tanto amparo. Seriam sessenta longos minutos sem ele que a obrigariam a dançar com fantasmas da solidão cuja impiedade é famosa. Esses fantasmas poderiam muito bem...
...
— Olga? – Antônio sacudiu-a. Olga parecia um bichinho assustado. Antônio abraçou-a, podendo sentir os músculos delicados das costas dela retesados e frios. Após uns segundos de conforto, entraram no elevador. Ele foi para seu dia de trabalho rotineiro e feliz.
— Ai, ai. Ele bem que merece meia torrada. – disse sorrindo em voz alta.

Lençóis de ar

Eu esperei na cama vazia,
O aconchego arrefeceu-se
Conforme ela embora ia...
O corpo endureceu-se

O calor dos seus braços
Foi só um irreal e triste sonho
Do perfume aos finos passos
Que levaram meu rosto risonho

Orgulhoso demais em assumir
Para outros que nem desconfiam
Muito autocentrados para presumir
As lágrimas que esses olhos desfiam

Um reflexo opaco no espelho
De olhos que sentem falta
Das mãos perdidas, sem conselho
Nem rumo, nem norte, nem pauta...

Hora do chá tedioso

Domingo à noite,
Já é tarde, tarde e meia...
Vou dormir pra acordar
Mas antes café, sempre café...

Só um pouquinho,
Falo a mim, paro, ponho
Açúcar me deixa irrequieto
Eu tomo mesmo assim.

Anis, hortelã, camomila,
Pacotinhos coloridos
Rosa, azuis, amarelos...
Combinações de infância.

Tomo depressa a xícara
Alguém quer me pegar
Como bolacha? Ah, sim!

Segunda xícara,
Olhar pela janela
Asfalto úmido,
Árvores úmidas,
Toalhas molhadas

Ainda bem que amanhã é segunda-feira.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Um agradinho

Foi lá pelas oito horas daquele frio sábado de julho, de bonito céu azul, quando percebeu o quanto precisava de umas peças de roupas. Uma calça jeans e um suéter, só. Apesar do cansaço e do conforto convidativo dos cobertores, resolveu ir. Afinal, eram apenas duas peças de roupa.
Entrou no carro, sentou-se, sentiu algo... tirou alguns papéis dos bolsos enquanto planejava o trajeto: iria a uma loja conhecida no centro da cidade, seria rápido e metódico, depois voltaria para seu apartamento onde assistiria a um filme europeu na tevê a cabo. Feito isso, manobrou para sair da garagem cujos portões só funcionavam normalmente aos fins de semana.
Depois de procurar muito por uma vaga, conseguiu estacionar. Saía do carro quando sentiu a inospitalidade daquela manhã, não parecia um bom dia para sair de casa. Mesmo com o sol, o ar estava tão seco que chegava a machucar as narinas ao respirá-lo. As ruas estavam abarrotadas de gente apressada, mal-educada e doida para ir para casa. Seu corpo, contudo, parecia não ligar muito para o ambiente, visto que as pernas logo começaram a marchar e os olhos a percorrer tudo, procurando algo atrativo que o fizesse parar e prestar atenção. Deveria ser o indiferente azul do céu, poderia ser o frio também, sentia os dedos dormentes... parecia meio letárgico.
Percebeu-se parado olhando fixamente uma vitrine. Gostou, quis entrar. Dentro da loja, um umidificador – ar artificial, claro; mas bem gostoso. A musiquinha ambiente (que não era a bossa nova costumeira) parecia mais um mantra. Batidas eletrônicas intercaladas com algo... não sabia dizer o quê. A melodia era tão hipnótica quanto as roupas na vitrine e nas sedutoras prateleiras de madeira clara.
Já estava lá mesmo, o que custava entrar. Que bonitas! Luzes redondas, claras e pequenas numa iluminação dirigida e muito planejada, os tons creme que nada interferiam naquele macio transe de algodão, lã merino e etiquetas de blusas, calças e pulôveres que, nas prateleiras, estavam a se exibir... dane-se.
Conversou um pouco, foi seco e direto. As vendedoras entenderam que ele não estava ali para brincadeiras. Ressentida, o jeans foi ao fashion week do éden. Claro! Trocaram-na pelos esnobes veludos e algodões. Tudo ali se resolvia. Sempre haveria outros tamanhos, outras cores, outras lojas e vários outros cartões de crédito.
Experimentou lãs que o pinicavam. Ah!... Mas ficaram tão bonitas, serviram-me tão bem. Experimentara também parcas, golas rulê, mangas compridas, curtas, camisas listradas, lisas, bordadas. Simplesmente lindo! Seria a luz indireta? Aquela música? Ou espelhos que não mostravam defeitos? Queria viver ali onde as coisas eram lindas e perfeitas, onde suas opiniões importavam e a vida andava.
Tomou uma água e continuou a tarefa do tira-e-põe. Depois de mais provas, um pouquinho mais relaxado, tomou um café e foi indo. Estava sedado e adestrado àquele ambiente, àqueles sorrisos e àquelas conversas. Esqueceu-se de todos seus princípios, mas e daí? A maioria não liga mesmo. E eu sozinho é que não vou conseguir mudar o mundo.
Depois de oito horas, cinco lojas e muito dinheiro gasto, estava de volta a um apartamento gelado em um bairro gelado. “Se bem que o dia hoje nem foi tão ruim assim” – pensou. Aqueles pensamentos inconformistas, no entanto, queriam voltar. Bem, não estou nem aí! – disse em voz alta enquanto se deitava no grande sofá. Aconchegou a cabeça a uma almofada e dormiu abraçado às sacolas.

Maçãs murchas, salto alto, ansiolíticos e afins

Espera-se da mulher, hoje, o cumprimento de vários papéis, como os de boa profissional, boa mãe e boa companheira. No entanto, muitas pessoas – nem sempre só homens – continuam pensando em tais mulheres como se pensava antigamente, ou seja, como cumpridoras do trabalho do lar e procriadoras.
É evidente que a mulher conquistou muito. Entretanto, percebe-se que ela ainda é tida, de acordo com a concepção de muitos, como a figura matriarcal suprema no lar. No lar. Não na Política, nem em ONGs, nem na Literatura, nem na sociedade, apenas no lar. Sem desmerecer tal função, que precisa, com toda certeza, ser mais valorizada; deve-se, ainda, pensar na mulher como igual e não apenas como a Gata Borralheira, transformada em princesa e cujo sapatinho de cristal pode resolver todos os problemas. Afinal, se Cinderela pudesse opinar, certamente diria que andar todos os dias com sapatos cujos saltos são de cristal deve ser, além de cansativo, muito doloroso.
Analogamente, pode-se perceber que a mulher é vista como multifuncional. Isto é, ela precisa ser uma profissional competente, ou não será bem sucedida no cargo; precisa ser uma mãe exemplar, ou falha com sua família; precisa ser uma amante dedicada, ou destrói seu relacionamento. Todas essas tarefas não são somente obrigações das mulheres, uma vez que os homens também participam ativamente dessas relações. E estes deveriam parar de esperar pela Branca de Neve, já que as maçãs murcharam e ela, agora, ambiciona tâmaras egípcias e, para consegui-las, a princesa precisa fazer um pouco mais do que ficar limpando a casa dos sete anões na espera do príncipe encantado.
Além disso, pode-se notar que a sociedade quer soluções fáceis para tudo, pois elas encurtam caminhos, facilitam decisões e, por isso, fazem a vida fluir mais feliz. Um homem moderno deve ansiar pela mulher linda, rica e independente, enquanto as mulheres devem fazer o inimaginável para alcançar esses modelos. Mas, e fosse possível recorrer à ajuda de fadas madrinhas? Bem, elas, agora, estariam tratando-se à base de ansiolíticos e antidepressivos, devido àqueles desejos ininterruptos, muitos feitos à toa.
Por muito tempo, e talvez até hoje, ouve-se dizer que a mulher quis deixar os afazeres domésticos para ganhar independência e espaço nos vínculos sociais, mostrando que valia tanto quanto o homem. Somente em parte isso é verdade, pois tal “saída”, realmente, proporcionou-lhe rumar novos horizontes, mas devido às necessidades de, às vezes, complementar a renda da casa que o marido não agüentava mais sustentar sozinho.
Logo, pode-se notar que a mulher só pode libertar-se do jugo ideológico quando perceber que pode deixar de ser uma “princesa” enclausurada em um castelo, cujos muros são as imposições sexistas, e tornar-se, fora dessa fortaleza, uma voz ativa e pensante em meio a uma multidão que, talvez por orgulho, não desça do salto.

terça-feira, 6 de julho de 2010

O nadador

Pela manhã azul e brumosa
Ele vai ao lago cinzento
Nas mãos, a toalha felpuda
E nela, nossos destinos
Prontos para se encharcar
A distância de um só puxão.

Seu corpo mistura-se à água,
E ambos dançam vertiginosos...
Em meio àquela desolação,
Tem-se o frio e o clac-clac das matas
Mas eles se bastam, pois estão juntos

Ele passa gentilmente pela água
Sentindo-a como o arrepio na pele
Profanando-a como a lenha
Que estala nas fogueiras pagãs
Vindas de ritos ancestrais...

Ela o abriga hospitaleira
E juntos continuam o rito
Dançando até a aurora cortar
Com raios agudos a escuridão
Que envolve o topo das serras
E que encobre a verdade dos nossos sonhos.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Os outonos daqui

Ele não sai da minha janela
Com seu vento frio e ocaso escuro,
Obscuro e assomado àquela
Tristeza do trabalho duro.

Dias cada vez mais solitários
Céus opalinos, frios... bondosos?
Almas sofridas em relicários
Passados ácidos e dolorosos.

O corpo segue resignado
Da dor outrora lancinante
Lucidez, amor, tudo acabado.

O pôr-do-sol azul-arroxeado
Últimos raios cruciais para este instante
Irresoluto segue um amante assim... apagado.

Bebidinhas espirituosas

Devido ao horizonte, aos tons de laranja, aos plátanos e às más notícias, você já não é mais o mesmo. O ocaso castanho, melancólico e estranhamente refortante faz de você tão manipulável que precisa desesperadamente de algo forte para lutar contra essa sensação. Onde está o uísque?
Não só pelo frio mas também pelo inverno seco e cortante, uma dose de licor à noite, para espantar a friagem, vai bem. Tossiu um pouco forte demais. Credo! Logo o licor agarra-se à gargante e desce bem doce, raspando... horrível.
Olha as margaridas, as roseiras carregadas de botões, o ipê florindo. Chegou finalmente! Vamos comemorar a promoção? Novamente ele vai à garrafa, nem me lembro o que era. Gim ou algum vermute. Bem, ele bebera e bebera. Comemorou a primavera, a promoção, brindou à família, ao cachorro, a tudo.
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No verão... Por que a gente não vai mais se ver? Ah? A ligação está ruim... o quê? Ah? Problemas com o quê? Ah?...
Ano após ano, as estações vão e ele bebe para festejar, para esquecer, para falar...
Do que era que eu estava falando mesmo?