sábado, 17 de julho de 2010

Diversão a noite inteira...

É tão triste ver claramente aquilo que me tornei. Tantas coisas promissoras que poderiam ter sido tanto... Eu queria que o futuro fosse um céu de inverno: azul e genuíno. Sem nenhuma nuvem perturbando a imensidão limpa de paz. Mas essa imensidão, com o tempo, restringiu-se à janela, à vista, aos olhos e agora ao nada. Não consigo ver o céu daqui.
Mesmo não sendo capaz de silenciar as vozes latejantes em sua cabeça, a escuridão era-lhe estranhamente reconfortante – talvez porque, ao menos, podia atenuar a melancolia e o ódio dentro dele. Olhava o céu, nada mais que um universo de carvão. Sentia-se sozinho.
Assim como seu dono, o apartamento estava igualmente abandonado. A cozinha, um nojo completo. A pia cheia de louça suja, engordurada; copos espalhados por todos os cantinhos escuros. Naquele momento, não pensava em limpeza. A varanda estava limpa. Chovera.
Devido a todo o uísque que tomara, sua visão bambeava e o estômago tentava regurgitar algo que não havia ali, droga!
Enquanto isso, a parasita estava alegre em algum lugar dessa cidade. Parasita, sim! Mesmo com sua elegância e todos os sapatos caros... me usou, não usou?
Entretanto, ela não escolhia qualquer um, já que combinaria bem com um atleta, quanto mais forte, mais leso. Mas não, ela queria os introvertidos e antissociais, porque, assim, o desafio era maior.
E, embora levasse tempo, com boa vontade e interesse ela conseguia. Já conseguira tanta coisa! Não queria nem quantidade, nem qualidade. Ela queria precisão. Quanto pior o resultado, melhores eram suas táticas. Provavelmente aquela mulher era toda feita de incitação e provas concretas de um mal ancestral. Ao final das contas, ela, feliz, dançava ao som de solos de guitarra; e eles, ao som de árias tristes.

Nuvens vermelhas como sangue acumulavam-se nos cantos do céu, bordejando as montanhas quase negras enquanto a lua brilhava amarela e opaca. Uma noite escura cheia de pessoas cultas e desesperadas em uma vernissage.
A moça loira olhava uma escultura abstrata, quando ele chegou, disfarçou o nervosismo e tentou falar da melhor maneira que podia:
— Bonito seu anel. De citrino, não é? – disse com cara de entendido, enquanto ela agora olhava a grande pedra amarela no dedo.
— Ah! É esse o nome? – respondeu com ar desinteressado.
Ele a olhou, depois à escultura, e tentou mais uma vez:
— Bonita, não é?
A moça dos olhos brilhantes parou, pensou um pouco... coitado:
— É... bonito... – e com uma olhadela examinou-o de cima a baixo. Reparando bem no pulôver de lã cinza, nos sapatos velhos e nos cabelos desgrenhados. Ele, desanimado, já ia saindo, quando ela disse:
— Você não me falou seu nome...
E ele voltou. Pelo resto da noite... iria, voltaria, subiria, desceria, rodearia, poderia fazer o que ela mandasse a noite toda.

O temporal cairia em minutos, mas algo mantinha as nuvens firmes como mármore. O céu cor de cobre, as nuvens cor de sangue, aquilo não estava certo. E, apesar da paisagem ser linda, eles ignoraram-na, pois havia um carro muito ansioso para voltar à garagem.
Decidiu ir comprar sapatos novos, mas estranhou quando a viu na mesma sapataria rindo com as amigas. Por que ela estaria tão feliz? Estavam falando dele? O quê? Dele? Qual seria o assunto? E por que ela fica dando risadinhas para aquele atendente de camisa azul? Teve vontade de pular de um nono andar, arrebentar-se no concreto. As pálpebras pesavam. Precisava de uma cama quente ou qualquer outra coisa que o acalmasse. Um banho, um café, um colchão com seus convenientes anexos.
Houve discussões, ela foi embora como a garrafa de uísque acabou de ir, agorinha mesmo. Depois, nervoso e com a boca seca, ele, a todo minuto, discava números já memorizados, mesmo sabendo que ninguém responderia mais do outro lado.
Talvez ela não fosse de todo ruim. Era bonita, elegante... “Qual o seu nome mesmo?” – era simpática. “Pode me passar aquele livro?” – nem parecia uma pergunta. “A gente se vê.” – nem parecia uma mentira.
O que ela fazia era isso. Na vinda, trazia beleza, um fugaz burburinho e só. Na partida, o prazer, paixão e arrebatamento, tornavam-se um misto melancólico e destrutivo.
Ela os queria, porque eram seu oposto: nervosos, previsíveis, possessivos. Nunca seria pega, pois os homens não percebem nada. Sequer um anel bonito, mas de vidro.
E, agora que um novo dia rasga dolorosamente o topo das serras, nada está bem, muito menos azul e genuíno.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Vida às seis da tarde II

Amigos para sempre

— Deixa ele saber – disse enquanto terminava de vestir as calças.
— Tá doido? Essa é boa... ah! Imagine a cara do Carlos se soubesse da gente? Acho que ele enfartava...
— E se ele souber? – disse debochado.
— Nem brinca com uma coisa dessas. Pensa no Carlinhos... – fez uma pausa, engoliu seco e disse:
— Afinal, vocês são amigos de sempre. Quase irmãos, Henrique. – disse em tom solene.
— Irmãos! Ah...! Ele que se dane!
— Não fala assim que eu não gosto. Vocês são melhores amigos, não são?
— É... somos. Melhores amigos – repetiu baixo e saiu com a mochila nas costas. – Tchau! Tem prova amanhã, tenho que estudar.

Vida às seis da tarde I

Feira de fim de ano

— Espera... é uma senhora de uns cinqüenta anos, de vermelho e cabelo curto? – eu disse fazendo uma cara de confuso.
— Isso! Essa mesma! Mas para todos os efeitos ela tem quarenta.
Dei um sorriso simpático e apontei a direção da banca em que a senhora, provavelmente mãe dele, estava. Desde que chegou, aquele homem estava tão perdido naquela feira que fiquei com dó e acabei dando um de bom samaritano. E, além disso, sua mãe era conhecida por todos, pois adorava as feiras de artesanato de nosso colégio.
Continuei vagueando pela galeria, correndo os olhos pelas caixinhas, enfeitinhos e demais cacarecos que todos achavam lindos. Todos, menos os alunos, pois passávamos tardes inteiras fazendo as peças e também porque achávamos aquela exposição um absurdo. Parecia dizer às pessoas que não sabíamos fazer nada além de pintar toalhinhas e marchetar porta-jóias de madeira envernizada. E nós, francamente, éramos capazes de fazer muito mais do que peças de artesanato.
— Carlos, vai buscar aquelas caixas que ficaram lá no almoxarifado. – a coordenadora me falou. Nunca gostei muito dela. Diziam que ela tinha um espírito artístico brilhante. Eu só via empáfia e grosseria por trás da armação dos óculos no rosto redondo. Mas... como eu era um dos alunos que ficaram para ajudar, tive que ir. Ah! Mas a escola é grande e ela nem quer tanto essas caixas. Bem que daria tempo para um passeio.
Nas ruas negras de piche – sim, havia ruas na escola –, eu escutava o barulho dos meus passos, diminuí o ritmo até não ouvir mais nada. O cheiro dos ciprestes era muito melhor à noite, sem toda aquela obrigação de aulas e provas, atrapalhando a vida. Infelizmente, cheguei logo ao velho almoxarifado que era usado só para estocar as peças prontas para as deliciosas feiras. Era uma sala bem grande, podia ter sido tão melhor aproveitada. E agora assim: a porta velha pintada de verde-musgo, o forro que abrigava cupins cujo barulho parecia tão grande quanto o escuro mole e pegajoso do lugar.
Carlos procurava um interruptor quando ouviu um som agudo? Um miado? Uma risada? Viu de relance um vulto. Achou que não fosse nada, mas quando o vulto tossiu, quase desmaiou.
— Eu não mordo, não... – deu um risinho sarcástico.
— Que susto, seu idiota! – disse enquanto tentava se acalmar, esfregando a mão no peito.
— Até parece que viu um fantasma – Henrique disse brincando.
— Muito engraçado! Vim pegar as caixas que a outra me pediu tão interessada e você aqui escondido no escuro!
— Relaxa – deu um tapinha nas costas do amigo.
— Casaco legal, Henrique...
—Comprei naquela loja nova no centro. Tem umas blusas legais lá, meio caro... o tecido pelo menos é bom, olha...
— Verdade, parece camurça. Por que você não me ajuda com essas caixas e depois a gente sai, hein?
— Pode ser.
— Então vamos logo antes que a dona Dulce tenha um filho.
Saíram com as caixas, carregando-as da melhor maneira que podiam.
— Aqui, dona Dulce. Colocaram o pedido no chão.
— Ótimo, meninos. – disse, inspecionando o conteúdo (estátuas de gesso) – Nenhuma quebrou, maravilha! Podem ir se quiserem, vocês foram muito bonzinhos hoje.
Desceram a ladeira que dava para o portão principal, já fechado – passava das onze. Carlos estava entretido em fechar o zíper do casaco. Henrique queria sair de lá o quanto antes.
— E aí? Aonde a gente vai? – Carlos falou assim que atravessaram o portão de ferro.
— Não sei. Aonde você quer ir? – Henrique estava pouco interessado, preocupava-se em acomodar as mãos nos bolsos da calça jeans.
— Ah, qualquer lugar está bom.
— É que não estou muito animado pra sair hoje. Todo esse artesanato da feira me cansou. Só quero ir pra casa.
— Ah, então a gente se vê amanhã. Ih... amanhã não vai dar, a Cecília quer sair comigo.
—Fica pra outro dia. Depois a gente marca, tá?
— Daí você me liga...?
— Claro!
Foram andando. E nunca... nunca quatro quarteirões pareceram tão longos.

domingo, 11 de julho de 2010

Amolação

Eu nem queria nada aquela noite. Estava só no meu canto da cama esperando poder dormir em paz, sem que ninguém ficasse me encostando.
Mas, não...! Ele queria. E, simplesmente, ignorou todas as negativas. Parecia que, se eu não cedesse, ele morreria, parecia implorar... ai, vida!
Bem... que há de se fazer numa situação dessas? ... Foi só uma perguntinha retórica, claro que não acho que vocês passam por isso!
Resumo da ópera? Vamos lá!
Não houve ópera. Só um one man show.
Podem falar o que quiserem, a culpada fui eu, mas isso não importa. Culpada ou não, eu vou sair às compras amanhã bem cedo! Não que eu esteja precisando comprar nada, mas uns sapatos exorbitantemente caros bem que compensam essa amolação.

sábado, 10 de julho de 2010

Conclusões

— Tudo bem?
— Acho que sim... – Antônio disse quase dormindo. Suspirou curta e secamente, meio insensível, poderia ser cansaço também, coitado! Tem trabalhado tanto ultimamente! Deu espaço na cama para Olga que, rapidamente, deitou-se, tirando só o jeans que vestia.
Olga queria pegar logo no sono, havia tido um dia cheio. Sua tese de mestrado fora corrigida por aquele orientadorzinho que sublinhou praticamente toda a pesquisa. Caneta cretina! A rotina maçante de seu trabalho sufocava-a. Pelo menos a família estava melhor, o pai saíra do hospital e a irmã formara-se na faculdade.
Idiotice – pensou consigo – também não fiz progresso algum na bendita terapia. “Você tem alguns problemas com envolvimento emocional...” – Olga disse baixinho fazendo uma careta. Terapeuta estúpida!... Dormia agora profundamente.
Acordou cedo, dormia-se tranquilamente ao lado. Olga achava aquilo engraçado, Antônio nunca acordava com o despertador. Um leve suspiro ecoou na imensidão branca da cozinha. Gostava de fazer aquilo, acordar um pouquinho mais cedo e preparar o café da manhã. No entanto, a única parte ruim era a torrada dela que sempre tinha de ser dividida. Mesmo ela perguntando:
— Você quer que eu faça uma pra você, Antônio?
— Não... eu não gosto muito de torrada. Muito seca, credo!
— É... sei.
Se não gostava, por que então ele sempre vinha com aquela lengalenga: “Me dá um pedacinho...” Não queria pensar naquilo, senão começaria o dia de mau humor. E a manhã de sexta-feira estava tão linda. Ah... era sexta-feira.
— Bom dia... Nossa! Já tá pronto. – Antônio falou, coçando os cabelos bagunçados – Olga...? Quando vou levantar e te encontrar ainda dormindo?
— Quinta-feira passada eu ainda estava na cama quando você levantou.
— Você tava na cama, mas não dormindo. – disse mordendo um pedaço de bolo de laranja.
— Que tal sentarmos e começarmos a comer antes que o leite esfrie, sim? – evasiva, Olga respondeu antes de tomar um gole de café com leite espumante, depois mordeu um pedaço de pão com manteiga, guardando a torrada recém feita, a parte mais gostosa, para o final.
— Me dá metadinha dessa torrada? – disse o noivo, que mais parecia uma criança sorrindo com a boca toda lambuzada de geleia.
Ela sorri, corta a fatia e lhe dá metade, pensando: “Ai que raiva! Sempre metade, não é? Porque eu nunca como uma única torrada inteira? Poderia ser o pão, ou o bolo, mas ele sempre come a metade do que eu mais gosto: a minha torrada. Saco! Amanhã vou tomar café antes dele acordar.” – com um pouco de desgosto engole o bocado final da guloseima, se é que se pode chamar uma torrada de guloseima.
Em menos de uma hora, saíam do quente apartamento para a imensidão fria de piche e concreto que os aguardava.
— Às sete a gente se vê – Antônio pisca para ela.
— Porque só às sete horas? Você sai às cinco do escritório.
— Trânsito querida, trânsito.
— Ah! É mesmo... – tanto passou por sua cabeça naquele instante... Poderia ficar sem ele, sem o vagaroso arrastar de pés pelo apartamento, sem a respiração calma, pausada e confiante. Respiração cuja presença dava-lhe tanto amparo. Seriam sessenta longos minutos sem ele que a obrigariam a dançar com fantasmas da solidão cuja impiedade é famosa. Esses fantasmas poderiam muito bem...
...
— Olga? – Antônio sacudiu-a. Olga parecia um bichinho assustado. Antônio abraçou-a, podendo sentir os músculos delicados das costas dela retesados e frios. Após uns segundos de conforto, entraram no elevador. Ele foi para seu dia de trabalho rotineiro e feliz.
— Ai, ai. Ele bem que merece meia torrada. – disse sorrindo em voz alta.

Lençóis de ar

Eu esperei na cama vazia,
O aconchego arrefeceu-se
Conforme ela embora ia...
O corpo endureceu-se

O calor dos seus braços
Foi só um irreal e triste sonho
Do perfume aos finos passos
Que levaram meu rosto risonho

Orgulhoso demais em assumir
Para outros que nem desconfiam
Muito autocentrados para presumir
As lágrimas que esses olhos desfiam

Um reflexo opaco no espelho
De olhos que sentem falta
Das mãos perdidas, sem conselho
Nem rumo, nem norte, nem pauta...

Hora do chá tedioso

Domingo à noite,
Já é tarde, tarde e meia...
Vou dormir pra acordar
Mas antes café, sempre café...

Só um pouquinho,
Falo a mim, paro, ponho
Açúcar me deixa irrequieto
Eu tomo mesmo assim.

Anis, hortelã, camomila,
Pacotinhos coloridos
Rosa, azuis, amarelos...
Combinações de infância.

Tomo depressa a xícara
Alguém quer me pegar
Como bolacha? Ah, sim!

Segunda xícara,
Olhar pela janela
Asfalto úmido,
Árvores úmidas,
Toalhas molhadas

Ainda bem que amanhã é segunda-feira.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Um agradinho

Foi lá pelas oito horas daquele frio sábado de julho, de bonito céu azul, quando percebeu o quanto precisava de umas peças de roupas. Uma calça jeans e um suéter, só. Apesar do cansaço e do conforto convidativo dos cobertores, resolveu ir. Afinal, eram apenas duas peças de roupa.
Entrou no carro, sentou-se, sentiu algo... tirou alguns papéis dos bolsos enquanto planejava o trajeto: iria a uma loja conhecida no centro da cidade, seria rápido e metódico, depois voltaria para seu apartamento onde assistiria a um filme europeu na tevê a cabo. Feito isso, manobrou para sair da garagem cujos portões só funcionavam normalmente aos fins de semana.
Depois de procurar muito por uma vaga, conseguiu estacionar. Saía do carro quando sentiu a inospitalidade daquela manhã, não parecia um bom dia para sair de casa. Mesmo com o sol, o ar estava tão seco que chegava a machucar as narinas ao respirá-lo. As ruas estavam abarrotadas de gente apressada, mal-educada e doida para ir para casa. Seu corpo, contudo, parecia não ligar muito para o ambiente, visto que as pernas logo começaram a marchar e os olhos a percorrer tudo, procurando algo atrativo que o fizesse parar e prestar atenção. Deveria ser o indiferente azul do céu, poderia ser o frio também, sentia os dedos dormentes... parecia meio letárgico.
Percebeu-se parado olhando fixamente uma vitrine. Gostou, quis entrar. Dentro da loja, um umidificador – ar artificial, claro; mas bem gostoso. A musiquinha ambiente (que não era a bossa nova costumeira) parecia mais um mantra. Batidas eletrônicas intercaladas com algo... não sabia dizer o quê. A melodia era tão hipnótica quanto as roupas na vitrine e nas sedutoras prateleiras de madeira clara.
Já estava lá mesmo, o que custava entrar. Que bonitas! Luzes redondas, claras e pequenas numa iluminação dirigida e muito planejada, os tons creme que nada interferiam naquele macio transe de algodão, lã merino e etiquetas de blusas, calças e pulôveres que, nas prateleiras, estavam a se exibir... dane-se.
Conversou um pouco, foi seco e direto. As vendedoras entenderam que ele não estava ali para brincadeiras. Ressentida, o jeans foi ao fashion week do éden. Claro! Trocaram-na pelos esnobes veludos e algodões. Tudo ali se resolvia. Sempre haveria outros tamanhos, outras cores, outras lojas e vários outros cartões de crédito.
Experimentou lãs que o pinicavam. Ah!... Mas ficaram tão bonitas, serviram-me tão bem. Experimentara também parcas, golas rulê, mangas compridas, curtas, camisas listradas, lisas, bordadas. Simplesmente lindo! Seria a luz indireta? Aquela música? Ou espelhos que não mostravam defeitos? Queria viver ali onde as coisas eram lindas e perfeitas, onde suas opiniões importavam e a vida andava.
Tomou uma água e continuou a tarefa do tira-e-põe. Depois de mais provas, um pouquinho mais relaxado, tomou um café e foi indo. Estava sedado e adestrado àquele ambiente, àqueles sorrisos e àquelas conversas. Esqueceu-se de todos seus princípios, mas e daí? A maioria não liga mesmo. E eu sozinho é que não vou conseguir mudar o mundo.
Depois de oito horas, cinco lojas e muito dinheiro gasto, estava de volta a um apartamento gelado em um bairro gelado. “Se bem que o dia hoje nem foi tão ruim assim” – pensou. Aqueles pensamentos inconformistas, no entanto, queriam voltar. Bem, não estou nem aí! – disse em voz alta enquanto se deitava no grande sofá. Aconchegou a cabeça a uma almofada e dormiu abraçado às sacolas.

Maçãs murchas, salto alto, ansiolíticos e afins

Espera-se da mulher, hoje, o cumprimento de vários papéis, como os de boa profissional, boa mãe e boa companheira. No entanto, muitas pessoas – nem sempre só homens – continuam pensando em tais mulheres como se pensava antigamente, ou seja, como cumpridoras do trabalho do lar e procriadoras.
É evidente que a mulher conquistou muito. Entretanto, percebe-se que ela ainda é tida, de acordo com a concepção de muitos, como a figura matriarcal suprema no lar. No lar. Não na Política, nem em ONGs, nem na Literatura, nem na sociedade, apenas no lar. Sem desmerecer tal função, que precisa, com toda certeza, ser mais valorizada; deve-se, ainda, pensar na mulher como igual e não apenas como a Gata Borralheira, transformada em princesa e cujo sapatinho de cristal pode resolver todos os problemas. Afinal, se Cinderela pudesse opinar, certamente diria que andar todos os dias com sapatos cujos saltos são de cristal deve ser, além de cansativo, muito doloroso.
Analogamente, pode-se perceber que a mulher é vista como multifuncional. Isto é, ela precisa ser uma profissional competente, ou não será bem sucedida no cargo; precisa ser uma mãe exemplar, ou falha com sua família; precisa ser uma amante dedicada, ou destrói seu relacionamento. Todas essas tarefas não são somente obrigações das mulheres, uma vez que os homens também participam ativamente dessas relações. E estes deveriam parar de esperar pela Branca de Neve, já que as maçãs murcharam e ela, agora, ambiciona tâmaras egípcias e, para consegui-las, a princesa precisa fazer um pouco mais do que ficar limpando a casa dos sete anões na espera do príncipe encantado.
Além disso, pode-se notar que a sociedade quer soluções fáceis para tudo, pois elas encurtam caminhos, facilitam decisões e, por isso, fazem a vida fluir mais feliz. Um homem moderno deve ansiar pela mulher linda, rica e independente, enquanto as mulheres devem fazer o inimaginável para alcançar esses modelos. Mas, e fosse possível recorrer à ajuda de fadas madrinhas? Bem, elas, agora, estariam tratando-se à base de ansiolíticos e antidepressivos, devido àqueles desejos ininterruptos, muitos feitos à toa.
Por muito tempo, e talvez até hoje, ouve-se dizer que a mulher quis deixar os afazeres domésticos para ganhar independência e espaço nos vínculos sociais, mostrando que valia tanto quanto o homem. Somente em parte isso é verdade, pois tal “saída”, realmente, proporcionou-lhe rumar novos horizontes, mas devido às necessidades de, às vezes, complementar a renda da casa que o marido não agüentava mais sustentar sozinho.
Logo, pode-se notar que a mulher só pode libertar-se do jugo ideológico quando perceber que pode deixar de ser uma “princesa” enclausurada em um castelo, cujos muros são as imposições sexistas, e tornar-se, fora dessa fortaleza, uma voz ativa e pensante em meio a uma multidão que, talvez por orgulho, não desça do salto.

terça-feira, 6 de julho de 2010

O nadador

Pela manhã azul e brumosa
Ele vai ao lago cinzento
Nas mãos, a toalha felpuda
E nela, nossos destinos
Prontos para se encharcar
A distância de um só puxão.

Seu corpo mistura-se à água,
E ambos dançam vertiginosos...
Em meio àquela desolação,
Tem-se o frio e o clac-clac das matas
Mas eles se bastam, pois estão juntos

Ele passa gentilmente pela água
Sentindo-a como o arrepio na pele
Profanando-a como a lenha
Que estala nas fogueiras pagãs
Vindas de ritos ancestrais...

Ela o abriga hospitaleira
E juntos continuam o rito
Dançando até a aurora cortar
Com raios agudos a escuridão
Que envolve o topo das serras
E que encobre a verdade dos nossos sonhos.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Os outonos daqui

Ele não sai da minha janela
Com seu vento frio e ocaso escuro,
Obscuro e assomado àquela
Tristeza do trabalho duro.

Dias cada vez mais solitários
Céus opalinos, frios... bondosos?
Almas sofridas em relicários
Passados ácidos e dolorosos.

O corpo segue resignado
Da dor outrora lancinante
Lucidez, amor, tudo acabado.

O pôr-do-sol azul-arroxeado
Últimos raios cruciais para este instante
Irresoluto segue um amante assim... apagado.

Bebidinhas espirituosas

Devido ao horizonte, aos tons de laranja, aos plátanos e às más notícias, você já não é mais o mesmo. O ocaso castanho, melancólico e estranhamente refortante faz de você tão manipulável que precisa desesperadamente de algo forte para lutar contra essa sensação. Onde está o uísque?
Não só pelo frio mas também pelo inverno seco e cortante, uma dose de licor à noite, para espantar a friagem, vai bem. Tossiu um pouco forte demais. Credo! Logo o licor agarra-se à gargante e desce bem doce, raspando... horrível.
Olha as margaridas, as roseiras carregadas de botões, o ipê florindo. Chegou finalmente! Vamos comemorar a promoção? Novamente ele vai à garrafa, nem me lembro o que era. Gim ou algum vermute. Bem, ele bebera e bebera. Comemorou a primavera, a promoção, brindou à família, ao cachorro, a tudo.
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No verão... Por que a gente não vai mais se ver? Ah? A ligação está ruim... o quê? Ah? Problemas com o quê? Ah?...
Ano após ano, as estações vão e ele bebe para festejar, para esquecer, para falar...
Do que era que eu estava falando mesmo?