segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A sapateira de um adolescente

"Tudo pudesse a beleza,
e, de encoberto país,
viria alguém, com certeza,
para fazê-la feliz,
contemplando-lhe alma e corpo,
ai!
alma e corpo contemplando-lhe..."
(Cecília Meireles)

Dois pares de tênis encontraram-se rapidamente em uma esquina, viram uma loja de móveis, uma padaria e, do outro lado da rua, um hotel caro demais. Eles não precisavam nem de cômodas, muito menos de pães, então... hum... o saguão do hotel está bom demais.
Apesar do horário, o centro da cidade continuou vazio, inclusive durante aquela uma hora e meia. E, quando os meninos saíram na calçada, viram que o céu estava diferente. Ainda estava nublado, mas as nuvens agora pareciam mais pesadas. Havia tanto cinza – estava tudo muito estranho. Naquela cidade tudo era extremamente estranho e eles, estranhamente, gostavam disso.
Ao olhar aquele céu, parecia que nunca houvera um sol nem haveria nunca uma noite, era só aquilo, aquele cinza-chumbo. Será que o purgatório era assim? E o vento continuava a gelar os ossos e parecia que ia chover, já eram quase sete horas! Será que a blusa dele está na mochila? Eu deveria ter trazido a minha, não quero pedir emprestado. Ai que fome! Melhor nem olhar pra dentro dessa padaria... Nossa, que cheiro bom! Olha aqueles croissants! Quem precisa de comida agora? Só engorda. Nossa... e aquele sofá branco? Olha aqueles castiçais de cristal... minha mãe ia ficar louca aqui.
Vitrine, loja de móveis, silêncio, hesitação...:
— Fred, gostei do tênis novo.
— Ah...! – de onde veio isso? Ele não tinha visto esse tênis antes? Claro que tinha!
— É novo? – Henrique perguntou tecnicamente surpreso – Legal esse verde camuflado...
— Ah... comprei lá na... o seu também é legal, Ique.
Esquina, semáforo, pessoas, tênis verde, olhos, tênis azul, olhos, hesitação...
Cada um para um lado. Ele andava pesado, como se houvesse placas de cimento em seus pés, olhava tudo tão admirado, aquele céu cinza fazia tudo parecer tão mais irreal, será que aquilo aconteceu mesmo? Ou seria outro devaneio da sua cabeça fantasiosa, buscando uma fuga mais excitante daquela realidade já tão... real – ele gostava de imaginar.
Perdeu a hora, dormira demais, quando chegou à escola esperou pelo intervalo para a troca de aula e entrou de fininho.
Terceira aula. Ele era o tipo clássico: aquele de quem todos gostam. Bonito, notas altas, vida social estável... perfeito. Será que ele sairia algum dia de moda? – Henrique se perguntava – Ainda que tal questionamento fosse mais do que esdrúxulo, ainda assim, será? Será que o sorriso, as pupilas brilhantes, o corpo não tão amigo, mas já tão conhecido cairiam algum dia no desgosto popular? É... mesmo perfeito daquele jeito, tudo aquilo ainda podia um dia acabar. Não queria pensar naquilo. Cutucou um colega e perguntou o que estava escrito no quadro-negro: “São limites” – ele ouviu. “Ah, sim. Valeu!” – Henrique respondeu, pensando: “Até a matemática tem limites...”
Quarta aula. Um dia depois. E eles continuavam sentados um na frente do outro, como sempre foi, como se nada tivesse acontecido, como se ele não me tivesse roubado a namorada e eu não tivesse, numa vingança desnorteada, feito exatamente o contrário do que deveria ter feito. Era dia de apresentar o trabalho de geografia. E eu, como sempre, fui à frente e falei, porque era só aquilo que sabia fazer, falar.
Quinta aula. Eu não poderia simplesmente esquecer que tudo aquilo aconteceu? Ou então voltar ao começo e refazer tudo, de novo? – verbalizava o do tênis azul, também chamado Henrique. Ique para os amigos – Por que não? Já havia refeito aquela história tantas vezes na própria cabeça, droga de filosofia auto-ajuda!
Sexta aula. Pensou na vida que o amigo levava, sentiu raiva. Não porque o Fred fosse melhor que eu – Fred, do tênis verde, também chamado, pelos pais, de Frederico. – Mas... ele era muito, ah! Que ódio! Tudo que ele queria, ele conseguia. Era dito e feito, inclusive a minha namorada... Droga! Meu nariz tá escorrendo, quando escorre fica vermelho, depois resseca e, então, descama e quem vai gostar de alguém descamando como um lagarto trocando de pele? Nem a ex-namorada, nem o juiz do concurso da feira de ciências, ninguém. É triste, mas é verdade: aparência importa, não é aliviante saber disso?
Chegou em casa, a mochila ficou em algum canto entre a porta de entrada e a sala de estar. Deu tempo só de deitar-se no sofá e... caiu em êxtase, mas não um êxtase bom e sim uma sensação de abandono, indiferença cujo peso fazia-lhe doer os ombros, por isso deitou-se, senão cairia com todo aquele peso da vida dupla que já não era sua. Sem namorada, sem amigo... amigos... mas...
Levantou-se subitamente. Nenhum amigo para ligar no fim de semana insistindo em sair, nem namorada exigindo uma atenção que não conseguia dispensar nem a si mesmo. Começou a sentir-se bem... teve vontade de tomar café. Bem forte e bem doce.

Indiferença à mesa do chá das cinco

No mármore todo pintado, moram
Xícaras brancas e flores de cristal.
Olhos que se cruzam, mas não ousam
Falar as palavras causadoras de tal mal

– a palavra que ninguém quer falar –

Uma colher prateada que gira,
O pôr-do-sol que nas tardes frias
Não esquenta a mão que agora vira
Todo o mundo negro e quente do café...

– a mão que ninguém quer segurar –

E a noite chega, as mãos pousam
O casaco macio em que os ombros repousam
Sem palavras. Um final cujo grande mal
Está nos olhos do não-dito de uma tarde invernal.

– a situação que ninguém quer explicar –