D epois dos sacrifícios de um mundo,
Os dois meninos nasceram juntos
Para seguirem, separados, seus caminhos
Para serem o mais diferentes possível
E, assim, foram mundo afora
Lá do Velho Continente à América
Gritando para crescer, florescer
Älmas que ocupavam muito espaço
Nas embarcações, nas casas, neles mesmos
Gemiam pela vida, sempre vagando...
Estranhos irmãos, que por caminhos estreitos
Reencontrara-se. Foram viver.
Grandes coisas resolvem-se entre quatro paredes, mas, na verdade, são as pequenas coisas que na maioria das vezes importam.
terça-feira, 8 de março de 2011
Será que estou tão errado assim?
Simplesmente não entendo por que é tão complicado dizer as coisas apropriadas quando realmente devem-se dizê-las. Acho tão absurdo quando alguém, ao receber um elogio, faz de tudo para se menosprezar. Só falta escrever um manifesto intitulado “São seus olhos, não precisava! MESMO!”
Agora, se você gastou metade do seu salário naquele par de sapatos e parcelou em mil vezes aquele perfume importado, por que, então, fingir que não se importa só para não parecer arrogante? Não, gente, vamos lá! Como assim?
Todos os dias, sob os olhos de todos ao meu redor, pareço cada vez mais egocêntrico, só porque aceito os elogios – mas não as críticas! – sem querer fazer um buraco para enterrar minha cabeça. E não, não acho certo que alguém, ao receber um elogio – sincero, diga-se de uma vez –, diga brutamente “eu sei” ou “já sabia”. Não lhe deram educação, não, seu estúpido?!
Claro que os gregos e os troianos tornaram, simplesmente, impossível para nós agradar a todos, no entanto, nada nos impede de tentar. Então, da próxima vez, quando alguém elogiar a sua calça, não diga que é velha; quando alguém falar que seu perfume é gostoso, não precisa gritar que é Burberry, mas, pelo AMOR de Deus, não fale que é um desodorante aí do mercadinho! Olhe nos olhos da pessoa e agradeça. Só isso, viu?
Porque, honestamente, se você estivesse usando calça super velha e o desodorante do mercadinho da esquina, pode ter certeza de que ninguém ia ser tão simpático com você – tão voluntariamente, é claro!
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
Letting it out
That symptom used to come over him once every week. Every Friday, when the working hours were almost over, the feeling came sly and ruthless. By the time the office was getting ready to call it a day, he got more and more afraid because he knew the feeling would come to possess him mercilessly like it always did.
There was nothing he could do after being taken by that sensation of excruciating confidence. He has never been that secure in his whole life. Someone who has always taken the safest road, the most harmless decisions, and now it was like something strange had taken control of his body. As if some spirit whose personality was already dominating his, was representing a role which conveniently was his life. And, in spite of all the control under which he had been submitted, the only safe piece of knowledge he had was that that serious brunette man wasn’t him anymore.
At dusk, he sensed that the strange behavior was slowly getting stronger as a wicked glare passed by his eyes. When looking in the mirror, he thought he could be turning himself into someone else. Nonsense!
A hot shower would calm those crazy thoughts. It didn’t. After all the hot steam, the expensive aftershave balm and pricey perfume, he kept staring at that naked body in the closet’s full-length mirror and couldn’t recognize those forms. The strong thighs, the muscular shoulders and the impetuous look in his face… That wasn’t his figure. He was inconsolable because he couldn't know whose body was that.
The man looked at the alarm clock at the nightstand. It was late. Late enough so kids could be in their beds and grown-ups out of theirs to do what they were well-known for doing best: drinking, having casual sex, causing trouble and feeling lonely afterwards. His heart started pumping stronger than ever.
Another glare at the alarm clock, he knew exactly what he had to do to find himself again. “I need to find out who owns this body because certainly it isn’t me” – the feeble voice thought before fading away for the rest of the night.
A pair of jeans and a tight black t-shirt were just enough. He left the apartment driving dangerously fast and aiming for some crowded nightclub with a great deal of blinding lights, loud electronic music and drowsy colorful drinks.
As soon as he got there, he felt that sensation again… the confidence emerging from the depth of his being. And, as the music was getting louder, he seemed to be getting possessed again by those feelings which made him feel as if he was being ignored by his own self. And then, for the rest of the night, the confident man acted while he just observed.
In the morning after, a bright Saturday, he woke up. Now he was feeling insecure and sad just like he used to – insecure and depressed was good! He looked and saw in the bed lying next to him was a naked girl sleeping. He was extremely shocked because he had no idea whatsoever of how that girl ended up with him. A pretty girl with blond hair and beautiful legs.
He was cold. The hangover was awful. It was like as if his head was going to explode and his mouth had been filled up with cotton, so dry it was. He got up and went to the kitchen. Dirty glasses, an empty bottle of wine and next to the counter was an ashtray overfilled with half burnt butts, even though he didn’t smoke. Well… he could at least feel some comfort knowing that it hadn’t actually been him who did all that. He got dressed and left leaving the front door opened so the girl could find her way out.
And every Friday went like that. By the time he got in a place no mattered where that confident ghost would take place and act as him, doing everything he had never dared to do. The ghost would also leave him pieces of the turbulent night so he ashamed could reconstruct “his” itinerary and clean up after that ghost’s actions the next day.
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
Pronomes pessoais em um dia cabalístico
Poços de Caldas, 10/10/10
Apesar de serem amigos há muito tempo, falavam pouco, só o necessário, o que, para eles, já era mais que o suficiente. Ela era namorada do melhor amigo dele. Amigo que, hoje, nem é tão melhor assim. Ele, secretamente, gostava dela. Ela o achava uma graça. No entanto, nunca acontecia nada... nada acontecia.
Até que, num dia nublado qualquer, ela saiu para passear e, como toda boa moça, não pôde deixar de perder um tempinho vendo vitrines. Ele, inocente, também tinha saído, iria pagar umas contas para o pai. Eles não se viam fazia tanto tempo.
Encontraram-se em uma padaria, ele a olhou bem enquanto estava pedindo as bombas de chocolate. Ele ficou vermelho – costumava ser gordinho quando pequeno. Ela entendeu a vergonha e, então, fez um pedido também: cem gramas de mini-croissants de queijo. Ele era o doce e ela o salgado. Ele sorriu, ela sorriu. Foram comer juntos. Eles conversaram o necessário... e o desnecessário – eles precisavam de um supérfluo: “qual outra música você toca no violão?”, “fala outra coisa em italiano...”.
Quando ele percebeu que ela comia o último bocadinho, o último farelinho, o menino sentiu medo, e enjôo, e pavor, e dor no coração: ela iria embora. E ele não esperava o convite para acompanhá-la até o ponto de ônibus.
Ela estava esperando o ônibus com ele, o Senhor Mãos Suadas, quando começou a chover. Era um temporal tão forte que as árvores poderiam ser arrancadas do chão. Em alguns minutos eles estavam ensopados, mesmo estando sob o teto do ponto de ônibus.
Quando ela se encostou, bem devagarzinho, contra o peito dele, o abraço foi inevitável. Ele estava mais forte. Ela era tão delicada que parecia um passarinho. Ele gostava de passarinhos. Eles encaixaram-se tão perfeitamente, parecia que deveria ter sido sempre assim. A chuva continuava, o ônibus nunca vinha e eles ali.
Ela sentiu o início de um espirro, virou-se fazendo uma careta, bem quando ele se virava para perguntar algo. Ela não espirrou. Ele não perguntou. Os olhos, os narizes, as bocas. O mesmo ar, o mesmo sentimento, a mesma chuva, o mesmo beijo, o mesmo longo e maravilhoso beijo. A barba dele fazia cócegas. Ela tinha um cheiro tão bom. Ela fala italiano! Ele toca violão mesmo!
Os dois entraram no ônibus. Ela desceu vinte minutos depois. Ele a olhava pelo vidro, o ônibus não parou... não parou! Um minuto depois, ele desceu. Abraçaram-se forte. E, a partir daquele dia, nunca mais foram os mesmos.
Apesar de serem amigos há muito tempo, falavam pouco, só o necessário, o que, para eles, já era mais que o suficiente. Ela era namorada do melhor amigo dele. Amigo que, hoje, nem é tão melhor assim. Ele, secretamente, gostava dela. Ela o achava uma graça. No entanto, nunca acontecia nada... nada acontecia.
Até que, num dia nublado qualquer, ela saiu para passear e, como toda boa moça, não pôde deixar de perder um tempinho vendo vitrines. Ele, inocente, também tinha saído, iria pagar umas contas para o pai. Eles não se viam fazia tanto tempo.
Encontraram-se em uma padaria, ele a olhou bem enquanto estava pedindo as bombas de chocolate. Ele ficou vermelho – costumava ser gordinho quando pequeno. Ela entendeu a vergonha e, então, fez um pedido também: cem gramas de mini-croissants de queijo. Ele era o doce e ela o salgado. Ele sorriu, ela sorriu. Foram comer juntos. Eles conversaram o necessário... e o desnecessário – eles precisavam de um supérfluo: “qual outra música você toca no violão?”, “fala outra coisa em italiano...”.
Quando ele percebeu que ela comia o último bocadinho, o último farelinho, o menino sentiu medo, e enjôo, e pavor, e dor no coração: ela iria embora. E ele não esperava o convite para acompanhá-la até o ponto de ônibus.
Ela estava esperando o ônibus com ele, o Senhor Mãos Suadas, quando começou a chover. Era um temporal tão forte que as árvores poderiam ser arrancadas do chão. Em alguns minutos eles estavam ensopados, mesmo estando sob o teto do ponto de ônibus.
Quando ela se encostou, bem devagarzinho, contra o peito dele, o abraço foi inevitável. Ele estava mais forte. Ela era tão delicada que parecia um passarinho. Ele gostava de passarinhos. Eles encaixaram-se tão perfeitamente, parecia que deveria ter sido sempre assim. A chuva continuava, o ônibus nunca vinha e eles ali.
Ela sentiu o início de um espirro, virou-se fazendo uma careta, bem quando ele se virava para perguntar algo. Ela não espirrou. Ele não perguntou. Os olhos, os narizes, as bocas. O mesmo ar, o mesmo sentimento, a mesma chuva, o mesmo beijo, o mesmo longo e maravilhoso beijo. A barba dele fazia cócegas. Ela tinha um cheiro tão bom. Ela fala italiano! Ele toca violão mesmo!
Os dois entraram no ônibus. Ela desceu vinte minutos depois. Ele a olhava pelo vidro, o ônibus não parou... não parou! Um minuto depois, ele desceu. Abraçaram-se forte. E, a partir daquele dia, nunca mais foram os mesmos.
O tique-taque de um menino louco
I
— Hugo, você não consegue fazer nada direito? – a reclamação veio seguida de uma bufada bem sonora.
— O quê? Por quê? Mas não era essa a fantasia que você queria...?
— Não! Não era! Você nunca me ouve. Ai que raiva!
— Mas, amor, você disse...
— Eu sei bem o que eu disse e não foi isso! – jogou a máscara longe.
— Dane-se – o rapaz disse indiferente – Eu nem vou nessa festa estúpida mesmo.
— Claro que vai! Vai me deixar ir sozinha?
— Não quero ir. Se falei que não vou, é porque não vou e pronto!
— Você é meu namorado, por isso vai à festa comigo e ponto final.
— “... e vai comigo à festa...” – disse debochando.
— O que foi...?
— Não. Nada, não.
— Fala! Fala...
— Eu não vou na festa com você, não quero ir, que droga! Custa tanto assim entender?
— Tudo bem, então, eu vou sozinha...
— Pode ir, nunca te proibi.
— Ah! É assim, então?
— É. É assim mesmo. Do jeitinho que você tá vendo. Tô cansado da sua implicância com tudo o que eu faço!
— Que implicância? Você que não faz esforço nenhum por nós.
O rapaz mordia a parte interna da boca tão forte que sentia o sangue descer pela garganta.
— Nós? Ah! Essa é boa! Agora é “nós”. Deve tá louca mesmo.
— Louca? Agora eu que sou louca?! Você que não me escuta, não faz nada direito e eu que sou louca?
— Quer saber? Aqui, ó... pega isso aqui – apanhou a máscara no chão, jogando-a na menina – e vai trocar você mesmo! Faz alguma coisa útil dessa vidinha vazia! Desocupada!
— Hugo...! – “ele nunca falou assim comigo...” – era o que se podia ler nos olhos saltados da garota.
— Vê se me esquece. – disse saindo do apartamento da namorada. Corria igual a um maluco pela rua, queria chegar logo em casa.
O celular de Hugo estava há uma semana desligado, a avó não ligava mesmo, ela mal sabia mexer no controle remoto. E ele podia, enfim, ter sua paz.
II
O amanhecer daquele dia trouxe consigo um rebuliço de nuvens coloridas que lembravam algum tipo de doce pecaminosamente gostoso, como um sorvete cuja massa, aerada e saborosa, derrete na boca e gela o cérebro se você o engolir rápido demais.
Nas árvores, os passarinhos saudavam a manhã. No centro, a cidade ainda dormia. E naquela casa no final da rua sem saída, o dia já começara fazia tempo.
Os azulejos do banheiro suando, o boião de vidro com xampu, o corpo recém-ensaboado, o perfume gelado, as roupas passadas. Um tempo contado...
Passou rapidinho na cozinha antes de sair. Tinha tanta fome de manhã. “Cadê aquele bolo? Ah é... no forno!” Foi ali onde a avó tinha guardado o bolo do dia anterior. Como gostava de bolo de cenoura! Já enfiava o segundo pedaço na boca, correndo, afobado, sem nem sequer ter terminado de engolir o primeiro.
— Vai passar mal assim, meu filho.
— Nossa, vó, que susto! – disse cuspindo farelos por toda a pia da cozinha.
— Calma! Não precisa engasgar... – a avó disse com um leve risinho.
— A senhora me assustou, só isso!
— Você, guloso assim, pode passar mal algum dia.
— Já tô atrasado, vó. A bênção. – disse saindo da cozinha.
— Deus te abençoe, meu filho.
III
Mal a porta bateu, o rapaz já corria. Trabalhava em uma cafeteria no centro da cidade. Era um dia normal, uma manhã corrida, como todas as manhãs de quem trabalha. Todo o mundo acotovelando-se para ser atendido antes. Pessoas que só se humanizam depois do primeiro gole cafeinado. Eram quase nove horas, o movimento na cafeteria diminuíra. “Será que eu consegui, pelo menos, um cinco na prova de geometria?”, “será que eu ligo pra ela? Já faz uma semana?”, “que raiva da vó, por que ela tinha que jogar meu casaco vermelho fora! Era só costurar...”
Um casalzinho numa das mesinhas da calçada, tic, um cara digitando algo no computador na mesa ao lado da máquina de expressos, tac, uma mosca batendo no vidro da estufa de doces, tic, alguém entrando, tac. Nove e quarenta.
— Oi. Bom dia, tudo bem? Um macchiato, por favor.
— Um o quê? – “quem fica feliz assim nesse frio?”
— Um café com leite.
— Ah! – “Por que será que não falou café com leite...?”
— Extra-grande, por favor.
— A gente só tem o grande normal mesmo, pode ser? – “Cara esquisito”
— Não tem problema, pode ser sim.
— Tá... – percebeu que estava sendo mal-educado, tentou ser mais simpático, levar o dia bem... – Nunca te vi aqui no café, você é daqui da cidade mesmo?
— Sou sim, é que eu comecei a trabalhar hoje naquela livraria do outro lado da rua.
— Ah... legal! – olhou no crachá: Guilherme. “Bonita a blusa dele. Boné estranho... é cinza ou azul? Cinza-azulado? Será que é desbotado?”
— Eu estou bastante empolgado. Você pode por açúcar, por favor?
— Posso – “Primeiro dia de serviço com essa barba?”, “E esse boné?”
— Sempre quis trabalhar com livros...
— E uma livraria pareceu a melhor opção? – disse rindo inocentemente – Aqui seu café.
— Quanto?
— Três e cinqüenta.
Guilherme remexia os bolsos, procurando os cinco reais que ele achava que estavam ali, mas, na verdade, ficaram no bolso de outra calça jeans que agora estava sendo lavada.
— Esquece. Hoje fica por conta da casa.
— Valeu.
— Qualquer dia desses, eu passo na livraria pra retribuir a visita...
— Isso, passa sim!
Nove e cinquenta e cinco. Não havia mais ninguém na loja. O senhor Dupont cochilava no caixa. Olhou atrás de si, viu o calendário, dia 30. “Amanhã é o dia da maldita festa!”
Veio o dia trinta e um. O senhor Dupont chegou meio enfezado: “Hugo, você já fez isso?”, “Não, Sr. Dupont”, “E isso?”, “Ainda não também”, “Mas já é quase meio-dia! Você ainda não fez nada? Nada!”. O rapaz já não prestava mais atenção ao patrão. O pensamento estava no que iria fazer à noite. “Hoje é sexta, dia de ver filme, comendo pizza no sofá da sala... e a festa?”
Começou a colocar as xícaras lavadas no escorredor, droga de festa! Menina estúpida! Tinha certo brilho no olhar. De repente quis ir à festa sim, mas antes teria que decidir uma coisinha, não podia ir ao baile sem uma fantasia... a ideia veio enquanto ele atravessava a rua.
— Você não quer ir numa festa aí comigo?
— Oi? – Ela nem terminou de colocar o vaso na prateleira.
— Vai ter uma festa à fantasia hoje, quer ir?
— É... é... vou sim – “não fala nem oi”, “ai meu Deus” “e a fantasia...?”
— Vai ser hoje à meia-noite, sua fantasia eu mesmo arrumo, deixo aqui pra você hoje à tarde, pode ser?
—É... pode. Pode sim – não adiantava falar não agora. – a fantasia é de quê?
— Ah! Eu vou de Chapeleiro Maluco e você de Rainha de Copas.
— Ah, legal! Não deixa de passar aqui, heim. Sem fantasia não vou!
— Pode confiar. Comigo tá tranquilo. Quando eu deixar a fantasia aqui, a gente combina melhor, tá?
— Pode ser...
— Assim que se fala! – Hugo disse eufórico, abraçando Ana que já não entendia mais nada. – Até mais tarde!
— Até... – “O que foi isso?”, “Como assim?” – Espera! Hugo.
— O quê?
— Mas... e a sua namorada?
— A gente terminou.
— Nossa! Eu não sabia. Que chato! – A menina não estava sendo muito sincera.
— Não, tá tudo bem, faz tempo, já. Passo aqui mais tarde.
— Até mais tarde. Ah... passa antes das seis que é quando eu fecho a floricultura.
— Pode deixar. Eu vou ter que fechar o café hoje também, antes das seis venho aqui.
— Tá.
Hugo saiu saltitante da floricultura onde a vizinha trabalhava. Não voltaria para o trabalho naquela tarde, sorria assustadoramente enquanto pensava: “A Alice vai ficar puta da vida!”
— Hugo, você não consegue fazer nada direito? – a reclamação veio seguida de uma bufada bem sonora.
— O quê? Por quê? Mas não era essa a fantasia que você queria...?
— Não! Não era! Você nunca me ouve. Ai que raiva!
— Mas, amor, você disse...
— Eu sei bem o que eu disse e não foi isso! – jogou a máscara longe.
— Dane-se – o rapaz disse indiferente – Eu nem vou nessa festa estúpida mesmo.
— Claro que vai! Vai me deixar ir sozinha?
— Não quero ir. Se falei que não vou, é porque não vou e pronto!
— Você é meu namorado, por isso vai à festa comigo e ponto final.
— “... e vai comigo à festa...” – disse debochando.
— O que foi...?
— Não. Nada, não.
— Fala! Fala...
— Eu não vou na festa com você, não quero ir, que droga! Custa tanto assim entender?
— Tudo bem, então, eu vou sozinha...
— Pode ir, nunca te proibi.
— Ah! É assim, então?
— É. É assim mesmo. Do jeitinho que você tá vendo. Tô cansado da sua implicância com tudo o que eu faço!
— Que implicância? Você que não faz esforço nenhum por nós.
O rapaz mordia a parte interna da boca tão forte que sentia o sangue descer pela garganta.
— Nós? Ah! Essa é boa! Agora é “nós”. Deve tá louca mesmo.
— Louca? Agora eu que sou louca?! Você que não me escuta, não faz nada direito e eu que sou louca?
— Quer saber? Aqui, ó... pega isso aqui – apanhou a máscara no chão, jogando-a na menina – e vai trocar você mesmo! Faz alguma coisa útil dessa vidinha vazia! Desocupada!
— Hugo...! – “ele nunca falou assim comigo...” – era o que se podia ler nos olhos saltados da garota.
— Vê se me esquece. – disse saindo do apartamento da namorada. Corria igual a um maluco pela rua, queria chegar logo em casa.
O celular de Hugo estava há uma semana desligado, a avó não ligava mesmo, ela mal sabia mexer no controle remoto. E ele podia, enfim, ter sua paz.
II
O amanhecer daquele dia trouxe consigo um rebuliço de nuvens coloridas que lembravam algum tipo de doce pecaminosamente gostoso, como um sorvete cuja massa, aerada e saborosa, derrete na boca e gela o cérebro se você o engolir rápido demais.
Nas árvores, os passarinhos saudavam a manhã. No centro, a cidade ainda dormia. E naquela casa no final da rua sem saída, o dia já começara fazia tempo.
Os azulejos do banheiro suando, o boião de vidro com xampu, o corpo recém-ensaboado, o perfume gelado, as roupas passadas. Um tempo contado...
Passou rapidinho na cozinha antes de sair. Tinha tanta fome de manhã. “Cadê aquele bolo? Ah é... no forno!” Foi ali onde a avó tinha guardado o bolo do dia anterior. Como gostava de bolo de cenoura! Já enfiava o segundo pedaço na boca, correndo, afobado, sem nem sequer ter terminado de engolir o primeiro.
— Vai passar mal assim, meu filho.
— Nossa, vó, que susto! – disse cuspindo farelos por toda a pia da cozinha.
— Calma! Não precisa engasgar... – a avó disse com um leve risinho.
— A senhora me assustou, só isso!
— Você, guloso assim, pode passar mal algum dia.
— Já tô atrasado, vó. A bênção. – disse saindo da cozinha.
— Deus te abençoe, meu filho.
III
Mal a porta bateu, o rapaz já corria. Trabalhava em uma cafeteria no centro da cidade. Era um dia normal, uma manhã corrida, como todas as manhãs de quem trabalha. Todo o mundo acotovelando-se para ser atendido antes. Pessoas que só se humanizam depois do primeiro gole cafeinado. Eram quase nove horas, o movimento na cafeteria diminuíra. “Será que eu consegui, pelo menos, um cinco na prova de geometria?”, “será que eu ligo pra ela? Já faz uma semana?”, “que raiva da vó, por que ela tinha que jogar meu casaco vermelho fora! Era só costurar...”
Um casalzinho numa das mesinhas da calçada, tic, um cara digitando algo no computador na mesa ao lado da máquina de expressos, tac, uma mosca batendo no vidro da estufa de doces, tic, alguém entrando, tac. Nove e quarenta.
— Oi. Bom dia, tudo bem? Um macchiato, por favor.
— Um o quê? – “quem fica feliz assim nesse frio?”
— Um café com leite.
— Ah! – “Por que será que não falou café com leite...?”
— Extra-grande, por favor.
— A gente só tem o grande normal mesmo, pode ser? – “Cara esquisito”
— Não tem problema, pode ser sim.
— Tá... – percebeu que estava sendo mal-educado, tentou ser mais simpático, levar o dia bem... – Nunca te vi aqui no café, você é daqui da cidade mesmo?
— Sou sim, é que eu comecei a trabalhar hoje naquela livraria do outro lado da rua.
— Ah... legal! – olhou no crachá: Guilherme. “Bonita a blusa dele. Boné estranho... é cinza ou azul? Cinza-azulado? Será que é desbotado?”
— Eu estou bastante empolgado. Você pode por açúcar, por favor?
— Posso – “Primeiro dia de serviço com essa barba?”, “E esse boné?”
— Sempre quis trabalhar com livros...
— E uma livraria pareceu a melhor opção? – disse rindo inocentemente – Aqui seu café.
— Quanto?
— Três e cinqüenta.
Guilherme remexia os bolsos, procurando os cinco reais que ele achava que estavam ali, mas, na verdade, ficaram no bolso de outra calça jeans que agora estava sendo lavada.
— Esquece. Hoje fica por conta da casa.
— Valeu.
— Qualquer dia desses, eu passo na livraria pra retribuir a visita...
— Isso, passa sim!
Nove e cinquenta e cinco. Não havia mais ninguém na loja. O senhor Dupont cochilava no caixa. Olhou atrás de si, viu o calendário, dia 30. “Amanhã é o dia da maldita festa!”
Veio o dia trinta e um. O senhor Dupont chegou meio enfezado: “Hugo, você já fez isso?”, “Não, Sr. Dupont”, “E isso?”, “Ainda não também”, “Mas já é quase meio-dia! Você ainda não fez nada? Nada!”. O rapaz já não prestava mais atenção ao patrão. O pensamento estava no que iria fazer à noite. “Hoje é sexta, dia de ver filme, comendo pizza no sofá da sala... e a festa?”
Começou a colocar as xícaras lavadas no escorredor, droga de festa! Menina estúpida! Tinha certo brilho no olhar. De repente quis ir à festa sim, mas antes teria que decidir uma coisinha, não podia ir ao baile sem uma fantasia... a ideia veio enquanto ele atravessava a rua.
— Você não quer ir numa festa aí comigo?
— Oi? – Ela nem terminou de colocar o vaso na prateleira.
— Vai ter uma festa à fantasia hoje, quer ir?
— É... é... vou sim – “não fala nem oi”, “ai meu Deus” “e a fantasia...?”
— Vai ser hoje à meia-noite, sua fantasia eu mesmo arrumo, deixo aqui pra você hoje à tarde, pode ser?
—É... pode. Pode sim – não adiantava falar não agora. – a fantasia é de quê?
— Ah! Eu vou de Chapeleiro Maluco e você de Rainha de Copas.
— Ah, legal! Não deixa de passar aqui, heim. Sem fantasia não vou!
— Pode confiar. Comigo tá tranquilo. Quando eu deixar a fantasia aqui, a gente combina melhor, tá?
— Pode ser...
— Assim que se fala! – Hugo disse eufórico, abraçando Ana que já não entendia mais nada. – Até mais tarde!
— Até... – “O que foi isso?”, “Como assim?” – Espera! Hugo.
— O quê?
— Mas... e a sua namorada?
— A gente terminou.
— Nossa! Eu não sabia. Que chato! – A menina não estava sendo muito sincera.
— Não, tá tudo bem, faz tempo, já. Passo aqui mais tarde.
— Até mais tarde. Ah... passa antes das seis que é quando eu fecho a floricultura.
— Pode deixar. Eu vou ter que fechar o café hoje também, antes das seis venho aqui.
— Tá.
Hugo saiu saltitante da floricultura onde a vizinha trabalhava. Não voltaria para o trabalho naquela tarde, sorria assustadoramente enquanto pensava: “A Alice vai ficar puta da vida!”
sábado, 11 de setembro de 2010
Dia a dia de solteira
Inscrição na areia
O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!
Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?
O meu amor não tem
importância nenhuma.
(Cecília Meireles)
O sol espalhava seus milhões de raios finos e coloridos pela tarde que tinha o cheiro fresco e honesto de terra molhada. E a dona de casa nem via aquele lindo pôr-do-sol, pois estava preocupada demais com as tarefas ali na cozinha. A mãe limpara toda a casa, agora só falta preparar o café para quando eles chegarem morrendo de fome. Suco, bolo, pão, geleia, manteiga, leite... o que mais mesmo? “Tenho que começar a fazer esse bolo logo.”
No centro da cidade, o executivo trabalhava no layout de um anúncio de creme facial de uma empresa francesa. Suava com aquele calor cruel. Já estava com a corda no pescoço, pois era para ter entregado esse projeto ontem, ainda bem que estenderam o prazo até hoje à noite. O pai perdia seus dias frente a um computador sob a luz branca do seu cubículo. “Tenho que ligar em casa e avisar que vou chegar tarde hoje.”
O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!
Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?
O meu amor não tem
importância nenhuma.
(Cecília Meireles)
O sol espalhava seus milhões de raios finos e coloridos pela tarde que tinha o cheiro fresco e honesto de terra molhada. E a dona de casa nem via aquele lindo pôr-do-sol, pois estava preocupada demais com as tarefas ali na cozinha. A mãe limpara toda a casa, agora só falta preparar o café para quando eles chegarem morrendo de fome. Suco, bolo, pão, geleia, manteiga, leite... o que mais mesmo? “Tenho que começar a fazer esse bolo logo.”
No centro da cidade, o executivo trabalhava no layout de um anúncio de creme facial de uma empresa francesa. Suava com aquele calor cruel. Já estava com a corda no pescoço, pois era para ter entregado esse projeto ontem, ainda bem que estenderam o prazo até hoje à noite. O pai perdia seus dias frente a um computador sob a luz branca do seu cubículo. “Tenho que ligar em casa e avisar que vou chegar tarde hoje.”
Saindo da academia de ginástica, a menina de olhos azuis olhou para o rapaz de camiseta regata que estava encostado no balcão da lanchonete. Ele não a viu. As amigas perceberam. A menina de olhos azuis não iria dormir em casa.
O menino de olhos azuis saída da aula de tênis, quando viu um carro preto parado na esquina, era o furgão de um amigo, o menino também não dormiria em casa.
Tudo na casa estava lindo, o chão encerado, os cômodos perfumados, a mesa posta. Tudo perfeito. Enquanto a mãe tomava seu banho, a secretária eletrônica gravava os recados: “Amor, hoje vou chegar mais tarde, tenho que terminar aquele projeto. Te amo”, “Mãe, vou sair com as meninas depois da academia, viu? Beijo”, “Mãe, vou dormir na casa do Marcos hoje, tá? Até amanhã”.
Oito horas no relógio da sala, silêncio. Na mesa da sala de jantar, um pires, uma xícara, uma colherzinha de café. No banheiro, uma toalha molhada, um pote de creme hidratante, uma escova de dente. Na mesinha de cabeceira, um copo d’água, um livro, cinco comprimidos. Amanhã é um novo dia.
Tudo na casa estava lindo, o chão encerado, os cômodos perfumados, a mesa posta. Tudo perfeito. Enquanto a mãe tomava seu banho, a secretária eletrônica gravava os recados: “Amor, hoje vou chegar mais tarde, tenho que terminar aquele projeto. Te amo”, “Mãe, vou sair com as meninas depois da academia, viu? Beijo”, “Mãe, vou dormir na casa do Marcos hoje, tá? Até amanhã”.
Oito horas no relógio da sala, silêncio. Na mesa da sala de jantar, um pires, uma xícara, uma colherzinha de café. No banheiro, uma toalha molhada, um pote de creme hidratante, uma escova de dente. Na mesinha de cabeceira, um copo d’água, um livro, cinco comprimidos. Amanhã é um novo dia.
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Sem motivo
Mesmo com toda beleza
Não lhe quero dizer
Uma cançãozinha de tristeza,
Da noite ou do entardecer.
Eu quero escrever
Trova daquele prazer
E que fale deste amor,
De deleite e também de dor.
Da chama que havia sido
Que, em demasia,
Transformara o acontecido.
Dor que queima e consome,
Sem motivo extasia
E, assim, rápida, some.
Não lhe quero dizer
Uma cançãozinha de tristeza,
Da noite ou do entardecer.
Eu quero escrever
Trova daquele prazer
E que fale deste amor,
De deleite e também de dor.
Da chama que havia sido
Que, em demasia,
Transformara o acontecido.
Dor que queima e consome,
Sem motivo extasia
E, assim, rápida, some.
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